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Crítica: "The Voices" ("As Vozes"), de Marjane Satrapi


Depois de visionar este espetáculo de pura bizarria que é "As Vozes" da israelita Marjane Satrapi (que aqui assina a sua primeira obra falada em inglês), apetece dizer que está encontrada uma das películas mais singulares de 2015. Ora vejamos, Jerry Hickfang (um Ryan Reynolds de sufocante brilhantismo, que não só interpreta o protagonista como também dá voz aos seus animais de estimação) é um funcionário de uma fábrica de banheiras, marcado por um passado cheio de traumas que o perseguem no quotidiano, sob a forma de pensamentos homicidas que lhe são incutidos pelo maquiavélico Mr. Whiskers, o seu gato...


Satrapi cria este universo surreal recorrendo a um humor negro e, não raras vezes, perverso que se funde na perfeição com os elementos de terror, inerentes à violência extrema que persegue o protagonista (que é, no entanto, quase sempre apresentada de forma humorística), e depois há aquele ambiente de não lugar que determinados cenários (a fábrica em que o protagonista trabalha, por exemplo) encerram em si mesmos. Assim, "As Vozes" acaba por funcionar mais como uma experiência onírica, do que como um retrato realista de um psicopata, o que lhe proporciona uma certo charme extra, fazendo do seu visionamento uma experiência verdadeiramente memorável.


"As Vozes" é portanto uma obra desafiante, macabra e a espaços, até estranhamente tocante, que nos leva numa viagem sombria, mas infinitamente fascinante até ao interior de uma mente retorcida, porém gentil (sendo que esta última parte é capaz de só fazer sentido para quem já viu o filme) de uma personagem que tem tanto de herói como de vilão. Para terminar digamos apenas que no cinema é necessário acreditar, e nós acreditamos em Satrapi e seguimo-la de olhos bem abertos.

10/10
Miguel Anjos

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