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Crítica: "As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado", de Miguel Gomes



Realização: Miguel Gomes
Argumento: Telmo Churro, Miguel GomesMariana Ricardo
Elenco: Crista Alfaiate, Chico Chapas, Luísa Cruz, Gonçalo Waddington, Joana de Verona, Teresa Madruga, João Pedro Bénard
Género: Drama
Duração: 131 minutos
Classificação Etária: M/12
Data De Estreia (Portugal): 24/09/2015
Site Oficial | IMDB

Depois de "O Inquieto", chega às salas "O Desolado", o segundo volume do já proclamado épico social de Miguel Gomes ("A Cara que Mereces", "Aquele Querido Mês de Agosto", "Tabu"), "As Mil e uma Noites", que tem como base o famoso conto persa, onde a bela Xerazade, a fim de preservar a sua vida, tenta entreter o diabólico rei com os seus relatos de histórias fantásticas povoadas de misticismo. Porém, esta livre adaptação não incute narrações a lendas persas nem algo que valha. Miguel Gomes substitui com outro tipo de histórias, as de um país socialmente desesperado, onde reina a miséria. Esse país é Portugal.


Desta feita, encontramos agora três crónicas assombradas pela desoloção dos seus protagonistas, a começar por Crónica da Fuga do Simão "Sem Tripas" o episódio mais árido e violento do grupo, onde seguimos um fugitivo à polícia em montes de aldeias vizinhas de Viseu. Uma história que na prática soa mirabolante, mas é na verdade inspirada num mediático caso real, que fez as manchetes dos nossos jornais. Aqui, Miguel Gomes revela uma faceta mais contemplativa, mais paciente e, nem por isso menos onírica, trabalhando com atores (excelente Chico Chapas, que voltaremos a ver no terceiro volume) e alguns não-atores (uma constante no seu trabalho, aliás), o cineasta evoca um universo negro, onde não há lugar para anedotas calorosas (lembremo-nos do episódio do galo, no primeiro volume) e a "felicidade", ou melhor, a momentânea ausência de sofrimento está reservada apenas para sonhos do protagonista com festins e orgias, ainda assim sonhos singularmente desolados...

Segue-se As Lágrimas da Juíza, um conto ácido e de influências teatrais, onde tudo se liga a tudo, causas e consequências vivem num imparável efeito-dominó, a miséria de uns gera a miséria de outros. É um dos segmentos mais bizarros do conjunto (misturando comédia non sense e uma crítica social sem receios) e, quem sabe, talvez por isso um dos mais apaixonantes.


E, no tom do seu lamento final, prepara o caminho para a terceira história, Os Donos de Dixie, esta a mais triste de todas. Um bairro algures nos subúrbios de Lisboa, um casal em que ela está doente, ou estão os dois doentes, um cachorro que anda de mão em mão e de dono em dono e até acaba por ver o seu próprio fantasma. Tudo nesta história é tangível, desde a melancolia dos protagonistas (o casal mais velho, Teresa Madruga e João Pedro Bénard, e o casal mais novo, Joana de Verona e Gonçalo Waddington), até aqueles breves instantes em que aquele prédio e as histórias que nele se encerram, se abrem perante nós.

Tal como já tinha acontecido no tomo anterior, Gomes reinventa o "realismo social" através de uma fita exuberante, que percorre cenários reveladores da nossa realidade portuguesa, de forma invulgarmente fascinante. O resultado foi um monumento e um dos mais importantes acontecimentos cinematográficos portugueses da história do cinema nacional.


Classificação: 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10
Texto de Miguel Anjos

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