"No Coração da Escuridão", de Paul Schrader
Paul
Schrader escreveu um livro chamado "Transcendental
Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer". Nele, homenageava esse trio de
autores, pela maneira como nos mostravam algo de transcendental. Dito de outro
modo, conseguiam filmar “conceitos”, que pertenciam ao domínio do invisível. No
entanto, embora falasse abertamente acerca do seu interesse por esse cinema
teológico, digamos assim, Schrader sempre se encarou como alguém incapaz de
conceber histórias similares. Como o mesmo tem dito em múltiplas entrevistas,
“havia sido corrompido pelo sexo e violência da cinematografia americana”.
Mas,
completados os seus 70 anos, um sentimento inexplicável e intraduzível
aparentava ter-se apoderado do autor de “American Gigolo” e “A Felina”. Tinha
chegado a altura de interiorizar, ou melhor corporizar essas suas inspirações,
que durante tantos anos ficaram adormecidas. Era o momento de fazer o seu filme
transcendental…
Chama-se
“No Coração da Escuridão”, e encena
a experiência dramática de um sacerdote protestante (Ethan Hawke) de uma
pequena comunidade de Nova Iorque, que diariamente necessita de combater a
corrupção da sua mente (incentivou o filho a alistar-se e perdeu-o nas areias
ensanguentadas do Iraque, por “uma guerra sem qualquer justificação moral”) e
corpo (um cancro), quando conhece um casal de ambientalistas radicais (Philip
Ettinger e Amanda Seyfried). Ele, encara os atuais problemas ambientais e,
especificamente, a falta de medidas para os combater, como uma sentença de
morte que não demorará a abater-se sobre o planeta. Ela, teme que as convicções
políticas do marido o conduzam a possíveis atos de violência…
Retomando
temas que marcaram os seus primeiros trabalhos (pensamos em “Taxi Driver” ou “A Rapariga da Zona Quente”), Schrader permanece interessado em
explorar, de forma sempre ambígua, as ténues fronteiras entre o Bem e o Mal, num
conto moral que é também um olhar melancólico e impossivelmente romântico sobre
o visível e o invisível, captando com pungente horror o dilema de uma personagem
presa entre o martírio e o desejo (quem quiser desenhar outras comparações,
poderá argumentar que o seu velho amigo e colaborador Martin Scorsese,
percorrera caminhos similares no seu “Silêncio”,
com o qual “No Coração da Escuridão”
faria uma extraordinária dupla).
Seguindo
essa mesma linha de pensamento, tornar-se-á necessário mencionar a intrincada
composição de Ethan Hawke (omnipresente nalgumas das mais interessantes
filmografias contemporâneas), que encapsula em si a violência interior que assombra
este “No Coração da Escuridão”. Cada
imagem, diálogo ou silêncio, parecem imediata e irremediavelmente condenados, por
um horror que sabemos estar destinado a surgir a qualquer momento. Dito de
outro modo, estamos perante um drama, com contornos pronunciados daquilo a que
apetece chamar de terror metafísico, que é narrativamente calmo, mas
espiritualmente inquieto.
Recentemente,
durante uma entrevista destinada a promover o lançamento de “No Coração da
Escuridão” nos EUA, o autor dizia abertamente que não lhe pareciam “existir
razões para nutrir nenhum tipo de otimismo em relação ao futuro”, e aquele que
aparenta mesmo ir ficar como o seu derradeiro filme demonstra precisamente
isso. Aconteça o que acontecer, há uma magoa terminal nestas imagens, que
rapidamente entra na nossa epiderme e nela se aloja nos 104 minutos que se
seguem. É o equivalente cinematográfico de uma porta de saída, portanto. Depois
disto, não resta mais nada.
Realização: Paul Schrader
Argumento: Paul Schrader
Elenco: Ethan Hawke, Amanda Seyfried, Cedric Kyles
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