"Happy End", de Michael Haneke
O
cinema espelha o mundo em seu torno. Como tal, será somente natural, que
encaremos os filmes que vemos, e as tendências que os mesmos reflitam, enquanto
evidências de preocupações contemporâneas, que exijam a nossa atenção. Olhando
para 2018, existem três filmes que aparentemente não estariam imediatamente
relacionados, mas acabam mesmo por funcionar como uma requintada e inquietante
trilogia. Falamos de “O Sacrifício de um Cervo Sagrado” (Yorgos Lanthimos), “Hereditário”
(Ari Aster), e “Happy End” (Michael
Haneke). Os dois primeiros empregam ferramentas classicamente enraizadas nas
mecânicas do cinema de terror (uma figura misteriosa, possuidora de poderes
sobrenaturais, e uma maldição relacionada com um culto pagão, respetivamente),
enquanto o terceiro opta pelo tom dramático extraordinariamente frio, que marca
todos os trabalhos do seu autor, contudo, um olhar atento denota as
desconcertantes semelhanças. Todos acompanham famílias burguesas, assombradas
pela progressiva aniquilação dos laços que as unem, pela incapacidade de
comunicar, uns com os outros, e com o exterior, que atingem um ponto de rutura,
que, como escrevia o dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce (1957-1995), “acontece quando não
sentimos qualquer proximidade pelo outro, nem mesmo pelo sangue”.
Em “Happy End” somos introduzidos ao
quotidiano do clã Laurent, pelo olhar perverso de uma criança chamada Eve
(Fantine Harduin), que vai viver com Georges (Mathieu Kassovitz), o pai que
nunca conheceu realmente, depois do falecimento da mãe. Com ele, reside também
a sua nova mulher (Laura Verlinden), que desconhece os desejos inconfessáveis,
que o conduzem a procurar uma amante online, a irmã (Isabelle Huppert), que se
esforça para controlar um filho que se sente amaldiçoado, e uma empresa em
estado de sítio, para terminar, há o avô (Jean-Louis Trintignant), o patriarca
que vê a sua mente a deteriorar-se (como antes acontecera à sua mulher), e à
beira do seu aniversário, ambiciona somente morrer com dignidade. Partilham uma
mansão, e convivem diariamente, nem que seja apenas à hora de jantar, no
entanto, pouco ou nada sabem acerca dos corpos que os rodeiam, deliberadamente
ou não, ignorando as muitas crises interiores que continuamente vão ocorrendo.
Reencontrando
temáticas de alguns dos seus títulos anteriores (sentimos ecos de “Benny's Video” e “Brincadeiras Perigosas”), o austríaco encena as muitas convulsões
que marcam o espaço intimo dos Laurent, como um filme coral, onde nunca pode
haver união, porque está mesmo em causa, a impossibilidade da coexistência, derivada
ou do egoísmo dilacerante, ou da falta de empatia (existem inúmeros momentos
que a convocam diretamente nestes desencantados 117 minutos). Seja como for,
numa Calais marcada por uma das maiores crises humanitárias dos nossos tempos
(era exatamente ali que se situava o campo conhecido como “A Selva”, entretanto,
desmantelado), aquilo a que assistimos é um apocalipse interior, a aniquilação
completa do que supostamente seria a última instituição a aguentar de pé. No
fim, ficamos entregues ao horror sereno de uma conclusão que não o é. Aquando
do seu lançamento, muitos mencionaram em tom jocoso que sendo um filme de
Michael Haneke, o título seria forçosamente irónico, mas será? Afinal, é
impossível saber. Uma coisa é certa, se o cinema existe como reflexo da
sociedade, 2018 ficará como o ano das mais subtis e, por conseguinte,
perturbantes preocupações de ordem social: a possível rotura dos laços mais
íntimos, e o fecho da comunicação entre gerações. Grandioso acontecimento,
belíssimo filme.
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
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