"Sete Estranhos no El Royale"
Encaramos Drew Godard como um legítimo sucessor de Quentin Tarantino. Não somos os primeiros a reconhecer-lhe isso, nem seremos os últimos, contudo, quando confrontados com um acontecimento tão incomum como “Sete Estranhos no El Royale”, parece-nos necessário reiterar esse sentimento. Porquê? Pois bem, acontece que o primeiro compreende o que transforma o segundo num génio, isto é, a sua capacidade de utilizar a iconografia cinematográfica do passado, para abordar temáticas visceralmente presentes.
Uma qualidade que Drew Godard já tinha evidenciado na sua longa-metragem anterior, “A Casa na Floresta”, onde desmontava e reinventava os mais comuns clichés do cinema de terror, no processo, compondo uma perturbante meditação sobre o voyeurismo, que analisava metodicamente a nossa atração pelo sofrimento e violência (o ópio do povo), e pintava os omnipresentes reality shows como equivalentes contemporâneos das lutas entre gladiadores ou dos velhos sacrifícios humanos.
Em “Sete Estranhos no El Royale”, abandonamos as componentes sobrenaturais dessa outra fita, para entrar num território mais próximo do noir, e os acontecimentos situam-se nos anos 60, época atribulada da história da nação americana, que conhecemos quase somente através de símbolos. Nomeadamente, a proliferação de cultos satânicos, o racismo crescente, a progressão da Guerra do Vietname, e o surgimento dos hippies, que encarnavam a saudade por uma atmosfera de paz e amor, que aparentava ser inalcançável…
Ora, todos esses detalhes históricos podem ser encontrados no filme, que transforma o peculiar e exuberante hotel titular, num intrincado microcosmos da sociedade americana, e os sete estranhos que lá se alojam, numa corporização dos seus pecados. A começar pela cantora negra, que procura alcançar algum sucesso, sabendo que para tal terá de lutar contra as limitações que lhe querem impor, devido à sua cor e sexo, e a acabar numa figura carismática, com pretensões messiânicas, que apenas procura aproveitar-se da fraqueza e do medo, daqueles que o rodeiam.
“Então, e tais problemas não continuam a verificar-se?” Perguntará o leitor, já a desenhar paralelos na sua mente entre o preconceito que continua a predominar atualmente, e a inquietante ascensão da extrema direita, habitualmente representada por gente, que nunca perde uma oportunidade de se aproveitar do pavor dos outros (se Jahir Bolsonaro, André Ventura ou Donald Trump fossem minimamente charmosos, então, a metáfora seria demasiado óbvia). Pois claro que sim, e é precisamente nesse parâmetro, que lhe reconhecemos esse lado tarantinesco. Na maneira como conta uma história distintamente dos anos 60, que existe para falar sobre o nosso “aqui e agora”.
Adicionalmente, Godard é alguém com um refinadíssimo sentido estético, capaz de construir um ambiente bonito, confortável e seguro, que se mantêm do primeiro ao último plano, como se a sofisticação dos cenários e movimentos de câmara, ocultasse a fealdade interior daquilo que vemos. Nada em “Sete Estranhos no El Royale” é “puro”, tudo foi conspurcado de alguma maneira, porém, só poderemos averiguar isso, quando começarmos a questionar as imagens que nos são mostradas, uma vez que, à primeira vista nada se passa. E, assim, se eleva um estupendo noir sanguinolento, a um contundente conto de crítica social, com apontamentos diabolicamente humorísticos, capazes de levar qualquer um ao céu.
Dito de outro modo, um senhor filmão.
Realização: Drew Godard
Argumento: Drew Godard
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