Avançar para o conteúdo principal
"Glass", de M. Night Shyamalan


Nunca é simples para um cineasta escapar às consequências mais ou menos perversas de possuir uma “imagem de marca”. Observe-se o caso de M. Night Shyamalan. Como continuar depois de um fenómeno como “O Sexto Sentido”, especialmente, quando um contingente da imprensa americana insiste em reduzir as nuances muito pessoais do seu trabalho às mais banais convenções do cinema de terror? Convenhamos, trata-se de um problema complexo, no entanto, o cineasta aparenta mesmo ter encontrado uma maneira interessante de o solucionar. Qual? Pois bem, recorrer a orçamentos pouco dispendiosos para filmar argumentos ousados, que procuram desconstruir as fórmulas que muitos thrillers contemporâneos insistem em seguir cegamente.

Em “Glass” encontramo-lo a encerrar o seu tríptico Eastrail 177, iniciado com “O Protegido”, onde um segurança hidrofóbico descobria a sua força e invulnerabilidade, bem como uma aptidão extrassensorial para detetar pecados já consumados pelas pessoas em que toca, sob a influência de um homem com um conhecimento enciclopédico do mundo da banda-desenhada e uma estrutura óssea extremamente frágil, e seguido por “Fragmentado”, que encenava o distúrbio de uma vitima de violentos abusos domésticos que desenvolveu múltiplas personalidades para a auxiliar a lidar com o trauma, sendo a mais importante A Besta, um ser anárquico que ambiciona acabar com o sofrimento dos inocentes que são brutalizados pelo quotidiano.



Teoricamente estariam reunidos os elementos para um conto de super-heróis relativamente corriqueiro, no entanto, Shyamalan nunca se contentou com as soluções narrativas mais óbvias e “Glass” é demonstrativo disso mesmo. Para si, os poderes sobrenaturais que as personagens possuem funcionam apenas como condenações prematuras e perpétuas a uma solidão inescapável (aliás, existe mesmo um momento em que o “vilão” de Samuel L. Jackson lamenta o quão horrível é viver sabendo que não se pertence a parte nenhuma). Seguindo essa linha de pensamento, os acontecimentos que passamos a seguir adquirem um certo sentimento de melancolia, de algum modo, reforçado pela ironia subtilmente desencantada que pauta o argumento.

Assim sendo, será necessário acrescentar que a complexidade de “Glass” poucas ou nenhumas semelhanças partilha com as aventuras despreocupadas e maquinais promovidas pelos estúdios da Marvel ou DC Comics? Afinal, Shyamalan quis aproveitar a familiaridade que começamos a sentir com a estrutura sempre arrumadinha e nada transgressiva desses devaneios monetários, para nos providenciar um eloquente conto moral e psicológico, que se desenrola num ritmo pausado e inquietante (muito característico do seu autor) rumo a uma conclusão espetacularmente imprevisível que o confirma mesmo como o mestre reinante da manipulação dramática. Com filmes melhores ou piores, ninguém “brinca” connosco como ele.

E se 129 minutos de subversão, pontuadas por um trio de composições notáveis não são suficientes para convencer o leitor mais cético, talvez seja importante lembrar que este é mais um capítulo numa busca incessante que começou logo em “O Sexto Sentido”. Isto é, uma jornada para convocar o espírito mais radical da fábula como um progresso regressivo que conduz o público até um tempo simbólico em que o fator humano e os seus fantasmas coexistem perversamente, e encaixá-lo no interior dos seus thrillers sobrenaturais aparentemente convencionais. Resumindo, é caso para saudar um cineasta que nem quando encena uma história de deuses e monstros, se esquece de que somos humanos, demasiado humanos.


Título Original: “Glass”
Realização: M. Night Shyamalan
Argumento: M. Night Shyamalan
Elenco: James McAvoy, Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Anya Taylor-Joy, Sarah Paulson, Spencer Treat Clark, Charlayne Woodard
Ano de Produção: 2019
País: EUA
Duração: 129 minutos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

"Destroyer: Ajuste de Contas" O falhanço financeiro de um duo de produções conturbadas (“Aeon Flux” e “O Corpo de Jennifer”) remeteram Karyn Kusama a um silêncio demasiado longo. No entanto, em 2016, reencontrámo-la aos comandos de um filme francamente impressionante. Chamava-se “The Invitation” e convidava-nos a entrar na intimidade fantasmática de um homem que não conseguia ultrapassar um acontecimento traumático que o destruiu. Passou completamente ao lado do circuito comercial, contudo, tornou-se num fenómeno de culto em homevideo e deu visibilidade suficiente à sua autora para lhe permitir filmar com um orçamento mais alto (9 milhões), o apoio de um estúdio interessado em auxiliar cineastas ousados (a Annapurna) e um elenco preenchido por nomes sonantes para filmar o seu magnum opus , ou como diriam os românticos alemães do século XIX a sua Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). Trata-se do conto sanguinolento e melancólico de Erin Bell (Nicole Kidman). Uma
"Clímax", de Gaspar Noé Nos primeiros minutos de “Clímax” é-nos providenciado um plano aéreo de uma mulher ensanguentada a percorrer um mar de neve, eventualmente caindo prostrada no branco e nele se distendendo. É a chamada  god’s eye view , um enquadramento da visão divina, que contempla as minúsculas romagens humanas lá do alto, sempre com indiferença. Essa vista alonga-se, para encontrar uma árvore, numa panorâmica lenta que vai abrindo caminho para o horizonte, orientando-se de tal modo que coloca a rapariga no céu e, por conseguinte, Deus na terra. Ainda não terminaram os segundos iniciais da sexta longa-metragem de Gaspar Noé e o mesmo já declarou que as imagens delirantes a que seremos expostos nos seguintes 95 minutos, se encontraram num intervalo permanente e perturbante entre o olhar distante de um qualquer Deus terreno e a lógica sacralizadora de um artista em busca de sensações viscerais. Caso restem dúvidas, o ecrã é imediatamente apoderado por uma
"Juliet, Nua", de Jesse Peretz Quando uma comédia romântica funciona mesmo muito bem, dão-se dois acontecimentos intrinsecamente interligados. Primeiro, começamos a acreditar nas personagens em causa, e a reconhecermo-nos nelas. Segundo, os apontamentos humorísticos convencem-nos tão bem do ambiente de aparente ligeireza, que somos completamente surpreendidos, quando a narrativa nos confronta com temáticas sérias. Felizmente, “Juliet, Nua” constitui mesmo um desses pequenos milagres. Um olhar, simultaneamente, melancólico e hilariante sobre um trio de indivíduos, que tentam encontrar o melhor caminho possível para a felicidade, dentro das situações francamente complexas, que os “assombram”. Resumindo de maneira necessariamente esquemática, esta é a história de Annie (a sempre confiável Rose Byrne), uma mulher de meia-idade, oriunda de uma pequena vila britânica, daquelas onde nunca nada parece acontecer, que namora com o intelectual Duncan (Chris O’Dowd)