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“Child's Play" ("O Boneco Diabólico"), de Lars Klevberg


Porquê refazer um filme? Para espremer mais uns trocos de uma marca ou para a reinventar? Convenhamos, que quem financia este estilo de produções tende a preocupar-se somente com a componente monetária, no entanto, porque não tentar cumprir ambas as premissas? Afinal, alguns dos maiores acontecimentos cinematográficos de todo o sempre, eram mesmo remakes. “Por um Punhado de Dólares” (Sergio Leone, 1964), “O Comboio do Medo” (William Friedkin, 1977), “Veio do Outro Mundo” (John Carpenter, 1982) e a lista continua… Ora, adotando esse raciocínio entendemos que o problema não é a ideia de reutilizar personagens e situações pré-existentes, mas sim a preguiça na hora de as reinventar. Nesta perspetiva, é preciso admitir que os ícones do cinema de terror dos anos 70/80 têm sofrido particularmente dessa maleita. Pensemos em “Pesadelo em Elm Street” (Samuel Bayer, 2010), que só ambicionava mesmo copiar as sequências mais emblemáticas do filme de 1984 que lhe servia de inspiração, ou pior no embaraçoso “Leatherface: A Origem do Mal” (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2017) que transformava o lendário psicopata criado por Tobe Hooper numa anedota desengraçada. Contudo, ainda existem realizadores que se interessam genuinamente pelos universos em que decidem mergulhar, caso do norueguês Lars Klevberg que ao encenar “O Boneco Diabólico” ousa imaginar o nascimento de Chucky como um cruzamento perverso entre a série “Black Mirror” e a franquia “Toy Story”.

Numa fábrica vietnamita, é feita a montagem de milhares de Buddi, bonecos eletrónicos de última geração, capazes de se conectar com os restantes dispositivos domésticos, assumindo que os mesmos também pertençam à extensa linha de produtos da corporação Kaslan. Segundo as expectativas dos seus criadores, este novo brinquedo vai transformar-se no “melhor amigo” de crianças dos quatro cantos do mundo. Quando um dos empregados da fábrica é injustamente despedido, resolve vingar-se e desativar os sistemas de segurança de um Buddi (os que o impediam de utilizar palavrões ou cometer atos de violência). Passado algum tempo, Karen Barclay (Aubrey Plaza) oferece ao filho Andy (Gabriel Bateman) um Buddi defeituoso (a quem Mark Hamill dá voz) que conseguiu levar gratuitamente da loja de brinquedos em que trabalha. O rapaz tenta dar-lhe o nome de Han Solo, mas os leitores de som do brinquedo encontram-se em mau estado e entendem Chucky. A partir desse momento, os dois formam uma amizade que Chucky encara como um compromisso. A seu ver, Andy é o único humano digno do seu amor e quem o magoar terá de pagar as consequências desse ato. Normalmente, um Buddi limitar-se-ia a facilitar a vida do seu companheiro de carne e osso, mas Chucky não conhece limites e essa sua falta de inibições éticas e morais leva-o a encarar o homicídio como uma maneira perfeitamente válida de assegurar o bem-estar do dono.


Quem conhecer o original “Child's Play" (Tom Holland, 1988), certamente, já terá notado num par de diferenças fundamentais. Isto é, no filme da década de 80, Chucky apenas assassinava pessoas por estar possuído pelo espírito de um serial killer, um ângulo sobrenatural que aqui é substituído pela vertente de ficção-científica e mais importante, ao alterar as motivações que guiam a personagem a própria natureza da sua relação com Andy Ou seja, em vez de o querer manipular psicologicamente. Chucky apenas ambiciona ser o companheiro mais fiel de Andy. Uma mudança que providencia uma componente humorística inesperada à primeira metade do filme. Desde o momento em que a criança tira o boneco da caixa, que os muitos tiques de Chucky desencadeiam múltiplas interações hilariantes que auxiliam a estabelecer a sua relação com Andy e conseguem convencer o espetador a sentir empatia pelo inocente brinquedo que, afinal, se encontra meramente a tentar cumprir o seu propósito (garantir que a felicidade constante do dono, no processo, eliminando todas e quaisquer más influencias). Seja a aprender palavrões ou confundir tarefas domésticas, Klevberg coloca estes pequenos episódios num contexto familiar e reconfortante, ainda que sempre pontuado por um certo negrume que se vai acentuando até explodir numa segunda metade caótica e sanguinolenta, com uma veia cómica que lembra o cáustico “Massacre no Texas 2” (Tobe Hooper, 1986), cujo visionamento é, aliás, um momento definitivo para Andy e Chucky.

Uma componente fundamental para a narrativa, uma vez que, como saberão os maiores fãs da personagem, Chucky sempre teve o seu quê de showman, procurando conceber metódicas e sádicas sinfonias de carnificina a cada crime que vai cometendo. Klevberg conhece bem essa faceta deste pequeno psicopata, logo quando o vemos perseguir uma nova vítima temos o conhecimento de antemão que algo macabro acontecerá e, nesse departamento, “O Boneco Diabólico” nunca desilude, oferecendo ao público um Chucky impiedoso que faz jus ao adjetivo que o título nacional lhe confere. Também aí, o cineasta norueguês se serve da mudança do sobrenatural para a ficção-cientifica, para empoderar o vilão com a capacidade de aceder aos mais diversos produtos eletrónicos, culminando numa sequência final, de visionamento recomendado apenas e só a estômagos fortes, que tem tanto de conto sobre os perigos da tecnologia como de sátira ao materialismo da sociedade contemporânea. Uma coisa é certa, “O Boneco Diabólico” não agradará a todos os paladares (nem tinha de o fazer), mas os fanáticos da personagem e de um certo cinema de terror algo esquecido nos dias que correm (o slasher) saíram de barriguinha bem cheia e ansiosos por uma eventual continuação.

Texto de Miguel Anjos

Realização: Lars Klevberg
Argumento: Tyler Burton Smith
Elenco: Gabriel Bateman, Aubrey Plaza, Bryan Tyree Henry, Mark Hamill
Duração: 90 minutos
Género: Terror
País: Canadá | EUA
Distribuição: NOS Audiovisuais

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