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"Her Smell" ("Her Smell: A Música nas Veias"), de Alex Ross Perry


Em “Her Smell: A Música nas Veias” (convenhamos, um subtítulo dispensável), Elisabeth Moss consegue desempenhar uma tarefa que nunca ninguém parece capaz de executar. Isto é, remover todo o glamour e sensualidade da persona de uma estrela de rock, a sua Becky Something, é líder de uma banda que punk que já viu melhores dias, no entanto, os fãs continuam a encará-la como uma figura messiânica digna de uma adoração permanente. Aliás, quando a conhecemos na primeira cena da sexta longa-metragem de Alex Ross Perry (cujos títulos anteriores tinham sido estreados no IndieLisboa, mas nunca distribuídos no circuito comercial português), até somos capazes de compreender o que move os seus seguidores. A atitude rebelde, a voz possante, o carisma, a maneira como se apodera do clássico “Another Girl Another Planet” (Only Ones, 1978) e o reinventa à sua imagem. De facto, sentimos que acabamos de assistir a um belo momento musical. Acontece que, não passa disso mesmo. De um instante fugaz numa rotina autodestrutiva que a leva mesmo a adotar comportamentos agressivos e erráticos, que acabam por afastar todos os que tentam relacionar-se com ela. Dito de outro modo, quando a cortina cai sobre a banda, a verdadeira Becky emerge como uma alcoólica perturbada e ansiosa que procura a paz no caos absoluto.

Escusado será dizer que, ao longo dos últimos anos, Moss tem vindo a evidenciar-se como uma das mais interessantes e consistentes atrizes (americanas ou não) tanto no grande ecrã como no pequeno (recordemos, por exemplo, as séries “Mad Men” ou “Top of the Lake”), contudo, os seus melhores desempenhos surgem sempre nas suas colaborações com Perry. Da amante desgostosa de “Listen Up Philip” (2014) à alma atormentada e decadente a quem deu corpo no arrepiante “Queen of the Earth” (2015). Em “Her Smell”, o americano providencia-lhe, porventura, a personagem mais desafiante que já a vimos corporizar e Moss entrega-se por completo ao empreendimento. Assumindo uma expressão de permanente instabilidade, acompanhada por um sorriso maníaco e dois olhos que parecem converter-se em pequenos buracos negros. Becky torna-se, portanto, num “furacão” que ninguém pode sequer aspirar a controlar, divertindo-se com longos e insultuosos monólogos acerca dos que a rodeiam, que ameaçam mesmo coloca-la no centro de possíveis confrontos físicos a qualquer momento. Não que isso lhe importe muito ou, pelo menos, assim nos parece, tendo em conta que as suas explosões de ódio vão adquirindo tiques performativos, evidenciando que o único método comunicativo que lhe resta é a raiva.


Essencialmente, poderíamos dizer que aquilo que Perry faz aqui é brincar com a fórmula rotineira das narrativas acerca de músicos (verídicos ou ficcionais), onde tendemos a encontrar contos de ascensão e queda, o cineasta escolheu focar-se unicamente nessa segunda metade. Para tal, empregando uma estrutura de cinco atos, cada um localizado num único recinto, no processo, “acorrentando” o espetador à protagonista à medida que a mesma vai alienando todas as pessoas com quem a amam e substituindo-as com novos súbditos. Uma estratégia que aproxima o filme do teatro, no entanto, não existe absolutamente nada que pudesse ser rotulado como “teatral” na mise en scène de Ross Perry, que encena o todo como um subtil, intoxicante e hipnótico cruzar de sensibilidades Da câmara nervosa e sempre pronta a captar close-ups extremos à banda-sonora paranóica, passando pelo trabalho imaculado de um duo de colaboradores de longa data, o diretor de fotografia Sean Prince Williams e o editor Robert Green. Em teoria, “Her Smell” é um melodrama, cujo parentesco será inevitavelmente ligado à cinematografia de John Cassavetes (1929–1989), em particular, o seminal “A Woman Under the Influence” (1974), contudo, a ambiência assume-se tão inquietante que não seria de todo exagerado mencionar fitas como "Antichrist" (Lars Von Trier, 2008) ou “Hagazussa” (Lukas Feigelfeld, 2017) enquanto eventuais primos distantes.

Porquê mencionar dois contos de terror? Porque “Her Smell” também o é, nem que apenas num plano existencial, digamos assim. Também, por isso, estamos perante uma extraordinária experiência cinematográfica, que apetece descrever como um opulento ataque de pânico claustrofóbico. Porém, Perry não está interessado somente na ideia de orquestrar caos, como ilustrado por uma segunda metade mais serena e contemplativa, que vai desconstruindo quem Becky foi e como mudou, ao mesmo tempo que nos ajuda a entender exatamente porque é que nenhum dos indivíduos que lhe são próximos é capaz de desistir dela. A partir daí, o restante filme passará a funcionar como um labirinto fantasmático em que ecoa um mistério que o realizador nunca clarifica por completo (nem tinha de o fazer): conseguirá a cantora exorcizar os seus demónios ou somente controlá-los temporariamente? Becky seria incapaz de responder à essa pergunta e, por conseguinte, nós também. Em última instância, talvez, seja mesmo aí que podemos encontrar a verdadeira definição de “humanismo” no dicionário de Perry. Ninguém é tratado com condescendência ou sobranceria, como tal, não estamos nem um passo atrás, nem um passo à frente da protagonista, restando-nos providenciar-lhe companhia na sua incessante descida aos infernos. Aprisionados nas suas agonias, medos e incertezas…

Texto de Miguel Anjos


Realização: Alex Ross Perry
Argumento: Alex Ross Perry
Elenco: Elisabeth Moss, Cara Delevingne, Dan Stevens, Agyness Deyn, Gayle Rankin, Ashley Benson, Amber Heard
Duração: 134 minutos
Género: Drama
País: EUA | Grécia
Distribuição: Cinemundo

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