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"A Plataforma", de Galder Gaztelu-Urrutia


Devido ao COVID-19, A Plataforma é mesmo a única estreia da semana e, quer simpatizemos mais ou menos com a primeira longa-metragem de Galder Gaztelu-Urrutia ninguém pode acusá-la de se encontrar desatualizada perante os tempos que vivemos… Uma característica que contribui para aquilo que nos parece ser um filme equivalente à antiguinha e metafórica faca de dois gumes. Por um lado, A Plataforma providencia-nos muitos e interessantes pontos para possíveis debates. Por outro, não o consegue fazer com nenhum tipo de subtileza, e num tempo em que domina a ansiedade e pânico, torna-se complicado recomendar um filme assim tão brutal, especialmente, tendo em conta que não aqui encontramos nada que filmes como Snowpiercer ou Parasitas (ambos de Bong-Joon Ho) não dissessem com mais sofisticação. Tudo começa numa cela cúbica, onde “acordamos” juntamente com Goreng, o nosso protagonista e um prisioneiro no que parece ser uma torre, dividida num número infindável de andares, cada um partilhado por dois reclusos, com um buraco no meio, onde desce diariamente uma plataforma (conhecida por todos como “O Buraco”) com um banquete de comida, comendo os de baixo o que os de cima desprezaram ou não tiveram tempo de açambarcar. Ao ler essa premissa é possível que venham à cabeça títulos como Cubo ou O Anjo Exterminador e Gaztelu-Urrutia consegue mesmo sustentar tamanhas evocações, devido a um trabalho de realização cuidado, que tanto realça à claustrofobia e incerteza da situação em que as personagens se encontram, como providencia ao todo um estilo metálico e brutalista muito particular. No entanto, e apesar de lhe reconhecermos validade na maneira como se propõe a abordar temas como a finitude de recursos ou a necessidade de solidariedade, a perspetiva constantemente negríssima da Plataforma torna-se cansativa e a sanguinolência de tanto exagerada (a certo ponto, a carnificina explicita passa a integrar quase todas as cenas) perde qualquer valor de choque e começa a entediar. No fim, ficamos com saudades do previamente mencionado Snowpiercer, onde o horror e a esperança eram devidamente doseados e a violência nunca era banalizada. Enfim, não quer isto dizer que A Plataforma não possua méritos, mas, à exceção dos fãs de cinema de género que poderão encontrar aqui alguns prazeres, não nos parece que existam muitos espetadores dispostos a embarcar nesta viagem.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: " El Hoyo"
Realização: Galder Gaztelu-Urrutia
Argumento: David Desola, Pedro Rivero
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan

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