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"Especiais", de Olivier Nakache e Éric Toledano


A comédia social é um género profundamente enraizado na cinematografia francesa e Olivier Nakache e Éric Toledano serão os seus mais altos representantes contemporâneos. De “Amigos Improváveis” a “Samba”, passando por “O Espírito da Festa”, reconhecemos neles uma capacidade incomum para conjugar componentes dramáticas que se encontram relacionadas com o nosso quotidiano, com uma comicidade genuína e bem-intencionada, resultando em objetos de cinema de raro humanismo, que tanto nos providenciam gargalhadas, como nos colocam uma ou outra lágrima no canto do olho. No entanto, tudo muda com “Especiais”, um soco no estômago que começou mesmo como uma tentativa de replicar a fórmula de “Amigos” noutro contexto e acabou mais próximo dos filmes de Ken Loach ou Shane Meadows. Um olhar contundente sobre a árdua rotina de Malik (Reda Kateb) e Bruno (Vincent Cassel), líderes de duas organizações em colaboração permanentemente. Um proporciona formação a jovens provenientes de zonas desfavorecidas, para que estes possam auxiliar o segundo a acolher e reintegrar crianças e adolescentes com graus extremos de autismo, que já tenham sido rejeitados por outras instituições. Nakache e Toledano pouco sabiam sobre o tema quando começaram a pesquisá-lo, por isso, “Especiais” foi evoluindo, passando do suposto feel good movie que nunca se concretizou ao notável exemplar de realismo social que passou a existir no seu lugar. Claro está, que é fácil fazer-nos sentir simpatia por alguém que se encontre aprisionado a uma situação pior que a nossa, contudo, Nakache e Toledano nunca seguem a via do sentimentalismo, nem mesmo quando o filme assume contornos de denúncia na maneira como aborda o estado calamitoso deste sistema de cuidados em França (não revelaremos mais sobre o assunto, para não diminuir o impacto do filme), providenciando sempre autonomia e humanismo às suas personagens, como resultado, todas nos parecem pessoas de carne e osso que queremos seguir e nenhuma cai no esquematismo da caricatura. E, quem pensar que Nakache e Toledano nos vêm atirar para um poço de angústia que se desengane, não só porque existem apontamentos subtis de humor, mas, acima de tudo, porque neste conto de super-heróis do dia-a-dia, ficamos a saber que por pior que seja a situação ainda existem almas dispostas a remar contra a maré e lutar pelo que é justo. Um extraordinário filme, a não perder.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Hors Normes”
Realização: Olivier Nakache, Éric Toledano
Argumento: Olivier Nakache, Éric Toledano
Elenco: Vincent Cassel, Reda Kateb, Hélène Vincent

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