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"Vidas Duplas", de Olivier Assayas


A componente mais interessante da filmografia de Olivier Assayas é a sua versatilidade. “As Nuvens de Sils Maria” era um melodrama de recorte antiquado, “Personal Shopper” anteviu o movimento do cinema de terror transcendental e o vindouro “Wasp Network” corresponde a uma história verídica sobre espionagem. Ou seja, com ele aos comandos, pudemos ter algumas certezas que receberemos narrativas fascinantes, mas nunca sabemos que forma vão adotar. O recentemente estreado “Vidas Duplas” constitui um outro pequeno-grande acontecimento na sua carreira. Nada mais, nada menos, que uma charmosa comédia de usos e costumes, a meio caminho entre Christophe Honoré, Jean Reno ir e Éric Rohmer, na qual acompanhamos um editor de livros (Guillaume Canet), casado com a protagonista de uma popularíssima série policial (Juliette Binoche), cuja existência se vai cruzar com um escritor caído em desgraça (Vincent Macaigne) e a líder de campanha de um político de pouca monta (Nora Hamzawi). Daí vai resultar uma história de fidelidades e traições, amor incerto e sexo desencantado, que surge profundamente enredada nas contradições de um tempo em que o livro enquanto objeto de papel está ameaçado pelas novas formas de difusão digital, sejam os e-books ou audiolivros. Estes dilemas, claro está, são longe de ser alheios ao quotidiano destas personagens não só porque afetam o meio em que convivem, mas porque a maneira como “consumimos”, utilizando um termo moderno, qualquer tipo de cultura tem também um efeito direto na maneira como o interpretamos. Ao abordar sabiamente essas temáticas e regá-las com apontamentos humorísticos sagazes e hilariantes, Assayas consegue mais uma vitória para adicionar aos seus ricos cânones.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Doubles Vies”
Realização: Olivier Assayas
Argumento: Olivier Assayas
Elenco: Guillaume Canet, Juliette Binoche, Vincent Macaigne, Christa Theret, Nora Hamzawi

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