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"Silvio e os Outros, de Paolo Sorrentino


Apenas os italianos conseguiram experienciar “Loro” como Paolo Sorrentino o idealizou. Isto é, dividido em dois volumes complementares, com uma duração conjunta de 204 minutos. Os restantes necessitarão de se a ver com este compacto de 145, pensado para facilitar a vida aos distribuidores internacionais, demasiado centrados em promover os blockbusters da consoada, para providenciar o acompanhamento necessário a tão fascinante empreendimento. No entanto, desenganem-se aqueles que pensam que as exigências do mercado arruinaram o trabalho do autor de “A Juventude” (2015), pelo contrário, “Silvio e os Outros” até acaba mesmo por se revelar como a derradeira confirmação do seu talento, proclamando-o definitivamente como um dos mais ilustres encenadores contemporâneos. Parece que mesmo quando são comprometidos, os seus filmes continuam a possuir um brilhantismo que nunca se dilui.

Posto isto, importa enquadrar corretamente este seu retorno ao milieu político (não acontecia desde “Il Divo: A Vida Espetacular de Giulio Andreotti”, e caso queiramos acreditar nos comentários do próprio Paolo Sorrentino, não tornaremos a vê-lo a ocupar esses espaços). Afinal, ao conceber o argumento deste seu ambicioso díptico, o cineasta ter-se-á deparado com uma questão fundamental e deveras complexa: como filmar o quotidiano de Silvio Berlusconi, quando a sua figura aparenta mesmo ter sido consumida pelo constante mediatismo em seu torno? A resposta? Esquecer as convenções rotineiras da cinebiografia contemporânea (quase sempre patusca e entediante), e concentrar os seus esforços em captar o mito do ex-presidente italiano. Como assim? Pois bem, digamos apenas que o lançamento dramático do todo nem sequer é feito pelo suposto biografado, mas sim por uma outra personagem: Sergio Morra (Riccardo Scarmacio), um cocainómano, que planeia utilizar a sua rede de acompanhantes femininas, para aceder á intimidade desse governador que venera como uma divindade.


Não que as suas intenções junto de Berlusconi sejam puras (longe disso), aliás, um dos elementos mais interessantes do fresco pintado por Sorrentino acabam mesmo por ser esses “outros” do título. O séquito hedonista que o vai seguindo cegamente. Uns, porque se deixaram iludir e passaram a encará-lo como uma espécie de Deus terreno. Outros, veem nele uma hipótese de conseguir as benesses que a vida se recusa a providenciar, sem necessitarem de desempenhar qualquer tipo de trabalho que os torne meritórios delas. Também, por isso, o primeiro-ministro composto por Toni Servillo (o ator fetiche do realizador, tendo protagonizado cinco das suas oito longas-metragens), revela-se como uma presença particularmente enigmática. Um ser permanentemente só, aprisionado às correntes de uma persona de dimensão transcendental, cuja existência é em si um truque ilusório.

Acontece que, “Silvio e os Outros” é mesmo isso. Um melodrama operático e ostensivo (nem os admiradores do provocador italiano quereriam outra coisa), que assume os contornos de um melancólico conto fantasmático, centrado numa vasta galeria de almas perdidas, sempre a correr atrás de um passado que não volta nunca. Dos velhos que sonham com o rejuvenescimento aos pecadores que gostavam de sentir a inocência de outrora. No limite, talvez, pudéssemos argumentar que se trata de uma fábula acerca do confronto com os dilemas da condição humana. Um bailado grotesco, onde todos caminham em direção ao excesso, esquecendo-se que de nada lhes valerá essa infinita busca por “mais”.


Realização: Paolo Sorrentino


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