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Crítica: "O Mistério de Silver Lake"


Importa contrariar os discursos maniqueístas que insistem em opor a forma ao conteúdo. Porquê? Pois bem, porque a forma resume-se ao primeiro dos conteúdos. Isto é, a construção de uma narrativa, encontra mesmo as suas raízes vitais na visão do mundo que nela se integra. Contudo, apenas uns poucos autores têm esse dom, de nos conseguir fazer sentir que o modo como contam as suas histórias, já é intrinsecamente parte das mesmas, e o americano David Robert Mitchell é um deles. Afinal, será necessário recordar a maneira como convocou a ambiência melancólica e perturbante do cinema de terror americano dos anos 80 (encontrando em John Carpenter uma referência fundamental), para acompanhar as duras convulsões do crescimento em “Vai Seguir-te”?

Em “O Mistério de Silver Lake”, encontramo-lo a trabalhar certos modelos de surrealismo que tendemos a associar a autores como David Lynch ou Jim Hosking, para encenar as deambulações mais ou menos erráticas de um jovem desempregado (Andrew Garfield), que se apaixona perdidamente por uma mulher que mal conhece (Riley Keough), depois de passar umas horas com ela. Na manhã seguinte, a mesma desaparece sem deixar rasto, e ele sente a necessidade de descobrir o que lhe aconteceu. Porém, essa busca aprisiona-o numa frustrante espiral de códigos e conspirações, sem saídas fáceis, nem explicações acessíveis.


A partir dessa “simples” premissa, Robert Mitchell criam uma narrativa paradoxal. Por um lado, a ambiência das personagens e lugares trazem à mente a estranheza grotesca desse surrealismo previamente mencionado, combinando-o com a herança do defunto noir (sentido na banda-sonora, e nos muitos posters que surgem nas paredes do protagonista), de maneira a construir um intrincado labirinto de aparências, onde até a máscara menos transparente pode ocultar os segredos mais obscenos. Por outro, tudo parece acontecer numa cidade fora de tempo, onde colidem inúmeras solidões, cada uma enredada numa linguagem que as outras são incapazes de entender.

Tudo isto encenado como uma experiência paradoxalmente onírica e realista, à medida que o protagonista vai sendo engolido pela sociedade que o rodeia e “O Mistério de Silver Lake” se começa a revelar como um poema sobre frustrações quotidianas, com pronunciadíssimos contornos de crítica social (o mundo está em apuros em múltiplas frentes e quase todos sofremos de problemas, no mínimo, fastidiosos, mas quem tem tempo para se preocupar com isso, quando há festas em telhados, séries de tv coloridas e música descerebrada na rádio?), que ainda tem o apanágio de também funcionar como um dos melhores e mais imprevisíveis thrillers dos últimos anos.


Realização: David Robert Mitchell


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