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"Oh, Canada", de Paul Schrader


Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O Mestre Jardineiro", em 2022, em ambos os casos rodados em condições extremas, com Schrader a enfrentar sérios problemas de saúde que podiam levá-lo a morrer em pleno plateau. Honra lhe seja feita, ele foi o primeiro a reconhecer esse risco e a marimbar-se para ele. Porquê? Porque ele é um dos poucos que ainda pertence a essa linhagem de cineastas que encaram o seu métier como uma fé, um chamamento divino pelo qual vale a pena morrer. São guerreiros do cinema. Vikings que empunham câmaras em vez de espadas.

"Oh, Canada" foi concebido como uma despedida. Não sabemos se o será ou não, dado que Schrader tem anunciado múltiplos projetos (um thriller sobre "irresponsabilidade sexual", um "remake de 7 Homens Sem Destino, se Terrence Malick e David Lynch tivessem cagado no argumento", além de um par de argumentos, um entregue a Antoine Fuqua, o outro pensado como a primeira longa-metragem da atriz Elisabeth Moss na qualidade de cineasta), ainda que, nenhum deles tenha sequer sido anunciado formalmente. É um filme que fecha ciclos, assim, no plural, reúne Schrader com Richard Gere, que dirigira no seu filme mais popular, "American Gigolo", de 1980, reafirma a sua conexão com o romancista Russell Banks, em quem se tinha baseado no previamente mencionado "Confrontação" e com quem acabou por manter uma relação de amizade (e admiração) desde então e, por fim, permite-lhe a oportunidade de concretizar um sonho que sentia urgência de ver realizado: fazer um filme sobre a morte (aquando do lançamento de "Oh, Canada", no mercado norte-americano, dizia ele que "se queres fazer um filme sobre a morte, é bom que te despaches").


O resultado é um regresso aos títulos mais experimentais do seu autor, um drama que reúne um conjunto de vedetas (não é só Gere, há também Jacob Elordi e Uma Thurman) para os atirar, não para uma narrativa convencional, mas para um turbilhão elíptico, onde passado e presente se fundem e confundem. É tentador sugerir que, ao encenar os últimos momentos de um documentarista que, como muitos contemporâneos seus, nos 60 e 70, migraram para o Canadá para escapar ao alistamento obrigatório no exército, Schrader arranjou maneira de se reinventar novamente. Nem é uma aproximação "estilo transcendental" (uma termo cunhado pelo próprio Schrader que, além de argumentista e realizador, é também um intelectual que muito tem contribuído para o discurso cinéfilo), nem uma desconstrução cinéfila do cinema que o fascina, antes um olhar impossivelmente íntimo sobre as escolhas que fazemos e a forma como muitas delas nos assombram, como fantasmas que nos seguem, incessantemente, encenado por um autor que nunca se esquece de que todos somos humanos, demasiado humanos...

O irrepreensível duo formado por Elordi e Gere, dando vida à mesma personagem — Elordi na sua juventude, Gere na velhice — tem algo de assombroso, ambos apresentam composições de invulgares nuances emocionais, construindo uma personagem que de muitas contradições, que entendemos, mesmo quando os seus pecados começam a ser revelados, lentamente, a conta gotas... Adicionalmente e, porque Schrader enquanto cinéfilo não será indiferente a estas coisas, há um elemento metatextual que podendo tratar-se somente de uma curiosidade gira (ou, pelo menos, é legítimo lê-lo como tal), parece ocultar algo bem mais melancólico, Elordi, um sex symbol com que muitos fantasiam, vai envelhecendo até se tornar em Gere que, nos seus anos áureos, gozou de um estatuto similar... Aqui, voltamos ao argumento de Schrader, "se queres fazer um filme sobre a morte, é bom que te despaches". Porquê? Porque dançamos com o ceifeiro diariamente, porque o envelhecimento é, quer queiramos, quer não, equivalente ao apodrecimento.

É um dos filmes mais singulares de Schrader (o que é dizer muito): um testamento fílmico, um flash terminal. Se Cocteau e Bergman tivessem nascido no seio de uma família calvinista, estrita e extremamente conservadora (Schrader viu o seu primeiro filme aos 12 anos, contra a vontade dos seus progenitores), algures no Michigan, talvez andassem a fazer coisas similares...

★★★★☆
 Texto de Miguel Anjos

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