"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc.
A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais do filme este é "o filme que Donald Trump não quer que veja", e se, essa ideia tem alguma piada (um pouco como o Papa João Paulo II alertou os católicos para a natureza blasfema de "Eu Vos Saúdo Maria", de Jean-Luc Godard), importa deitar abaixo a eventual expectativa a que ela nos pode conduzir. Isto é, "The Apprentice" não é uma missa anti-Trump, muito menos uma abordagem satírica, reminiscente da que Adam McKay adotou no seu filme sobre Dick Cheney, "Vice", de 2018. Pelo contrário...
O título original, "The Apprentice", portanto, "O Aprendiz" quando traduzido à letra, tem um duplo significado que é tudo menos negligenciável. Por um lado, é uma referência a... "The Apprentice", o reality show que Trump apresentou entre 2004 e 2015. Por outro, toca naquele que é o centro nevrálgico da história que interessou a Ali Abbasi, cineasta, e a Gabriel Sherman, argumentista, nomeadamente, a relação entre Roy Cohn (1927-1986) e Trump. Cohn é uma figura infame nos EUA, onde, essencialmente, toda a gente lhe virou as costas nos seus últimos anos de vida, mas, no exterior, é um quase desconhecido, ainda que, o seu trabalho como assistente do Senador McCarthy no período da Caça às Bruxas mereça ser conhecido e lembrado... pelos piores motivos, claro está.
Aquilo que Abbasi coloca em cena não é, portanto, a vida de Trump, muito menos a sua carreira política, mas sim, a sua juventude, nos anos 70 e 80, quando Donald (encarnado por Sebastian Stan) andava a cobrar as dívidas dos inquilinos dos empreendimentos imobiliários do pai. No momento em que o encontramos não temos como escapar a uma só conclusão, é um totó, o pau-mandado de um pai de temperamento volátil, incapaz de desenvolver uma personalidade própria ou imaginar uma existência que transcenda a condição em que se encontra naquela altura. Um dia, conhece Cohn (a quem dá vida Jeremy Strong, o Kendall Roy da série "Succession", isto é, um excecional ator de composição e também um "veterano" na arte de dar corpo a cretinos de direita) em quem encontrará mais do que um amigo, uma figura paterna alternativa.
Como previamente mencionado, não nos encontramos no modelo da cinebiografia clássica, dada a delimitação temporal do argumento e, tendo em conta o arrojo formal de Abbasi, também não parece correto arrumar "The Apprentice" nessa gaveta, não, o melhor é defini-lo como um inquietante conto (a)moral sobre a iniciação à corrupção. Trump era, pelo menos, segundo aquilo que Abbasi e Sherman nos contam, um recipiente vazio, alguém em quem Cohn podia projetar a sua personalidade, os seus conhecimentos, afinal, Cohn, além de ser homofóbico, era também um homosexual no armário, portanto, não conseguindo procriar, restava-lhe procurar noutra pessoa, um sucessor legítimo. A vida não demorou a ensinar-lhe que ser "carrasco" nunca salvou ninguém de se tornar "vítima", contudo, antes disso, houve mesmo um período de extrema proximidade entre os dois em que Cohn se dedicou a moldar o jovem Trump, transformando-o no homem que conhecemos hoje. Abbasi acompanha esse processo com um olhar ansioso, angustiado que, eventualmente, vai desembocar em momentos caóticos (a festa orgiástica na casa de Cohn, as montagens que contextualizam a evolução de Trump na história dos EUA, sempre com um tom de coro grego, antecipando a tragédia ou anunciando que, se calhar, ela já bateu à porta), que convocam saudosas memórias dos restantes títulos que compõem a filmografia de Abbasi, coincidentemente ou não, sempre enraizados no universo do terror.
E, quem fala de terror, fala da performance de Sebastian Stan (ironicamente, um imigrante, proveniente da Roménia, coisa que também não deve agradar nada ao xenófobo Trump) que, lentamente, vai sendo "possuído" pelos maneirismos e trejeitos que reconhecemos como "trumpismos", ainda que, nunca os exiba de forma exibicionista, quanto mais não seja, porque também esses elementos da sua persona se encontram ainda "em construção", enquanto Jeremy Strong estonteia com uma absoluta tour de force, vê-lo a emular Cohn é de tal forma impressionante que dá vontade de utilizar um daqueles velhos chavões críticos que costumam fazer as delícias das campanhas promocionais, "Jeremy Strong não interpreta Roy Cohn, Jeremy Strong é Roy Cohn".
Curiosamente, nos EUA, tem havido quem se sinta insultado de ambos os lados da barricada, os Republicanos que veem no filme de Abbasi uma campanha pró-Democrata e os Democratas que o acusam de ter humanizado o candidato a Presidente (uma divisão que, até ao momento, não se manifestou na Europa, provavelmente, comprovando as diferenças entre a perceção de quem vive aquela realidade e quem a observa ao longe, mas, isso são só especulações). De facto, o filme de Abbasi não quer convencer ninguém a votar Republicano e, no entanto, não demoniza Trump ao ponto de remover traços de humanidade claramente identificáveis. Importará, portanto, abandonar, dentro da medida do possível, os preconceitos ideológicos à porta e entender o filme como aquilo que ele é realmente, uma história de aprendizagem. De quê? De uma visão do mundo e, em última instância, da construção de uma lógica ética e moral, não como resposta às falências naturais e inevitáveis da sociedade em que vivemos, mas como algo de flexível, de manobrável, uma estratégia que permitirá a quem a adotar estar sempre na equipa dos vencedores, por privilegiar apenas a dimensão mais individualista de cada um.
Nesse sentido, o último plano (não é um spoiler, prometemos) é de uma riqueza simbólica imensa, o olhar de Donald, já formado pelo Cohn caído em desgraça e esquecido, a refletir a paisagem nova-iorquina ("a única cidade puramente transacional", como dizia Richard Kelly, autor do presciente "Southland Tales" que, em 2006, já anunciava a ascensão de uma figura como Trump). É o olhar de um predador a olhar para a sua nova presa (até essa leitura pode ser multiplicada, dado que Trump encontra em Nova Iorque a expressão máxima, quiçá. a única daquilo que é ser norte-americano, reconhecendo o seu pequeno microcosmos como um país em si, um mundo em si? O olhar de um capitalista que ambiciona mais do que fechar negócios? Ou continua Trump a ser um recetáculo vazio, que necessita de ser preenchido por alguma coisa, seja um programa ideológico ou uma paisagem? Abbasi não clarifica nada, nem necessita de o fazer, porque já nos deu este belo filme que, sem medo de chatear ninguém, se impõe como um dos títulos que importa preservar da colheita cinematográfica de 2024, nem que seja só por ser a antítese da cinebiografia comum, não é uma celebração ou condenação de alguém que, entretanto, já bateu as botas há tempo suficiente para que a opinião pública em seu torno se tenha consolidado (entre o binário "bom" ou "mau"), é uma análise a um dos homens mais importantes da atualidade (odeie-se, tolere-se, goste-se ou adora-se, não é isso que está em causa) feito enquanto ele ainda anda por aí, a exibir aquela sua natureza abrasiva e, digamos, a sua "sensibilidade cómica" alarve.
★★★★☆
Texto de Miguel Anjos
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