Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, caso os haja, preferirão o termo "forçados") a inferir o que pensam as personagens com base na sua linguagem corporal (o olhar entristecido do gato é, particularmente, acutilante, especialmente, quando contraposto à disposição inocentemente radiante do cão), nas suas ações, até, porque não, pelos sons que emitem... É, inquestionavelmente, uma experiência audaciosa, mas, Zilbalodis leva-a a bom porto, oferecendo-nos um filme de incomensurável riqueza que, inevitavelmente, se revelará de diferentes formas, dependendo de quem se predispuser a vê-lo. É uma aventura à moda antiga, daquelas que podiam ter saído de uma banda-desenhada francófona nos anos 50/60? É mesmo! Uma parábola sociopolítica sobre a necessidade de encontrar uma maneira de coexistir num mundo ameaçado por perigos que escapam ao controlo do homem? Sim e tremendamente persuasiva. Então, e os miúdos que só querem ver animais fofinhos? Estão com sorte porque todas as personagens merecem que soltemos um envergonhado "ooooooooh". Acima de tudo, é uma fábula tocante, onde a qualidade telúrica das imagens animadas hipnotiza e a empatia da câmara, reconhecendo uma identidade, uma alma, a cada um daqueles seres, é da ordem do divino.
É um poema visual, um cruzamento engenhoso entre Hayao Miyazaki, George Orwell, Terrence Malick e Carlos Reygadas, cujo poder não pode ser explicado, apenas vivido. Quem acha que a animação é só um entretenimento infantil, que pouco ou nada tem para oferecer a um público adulto, que tente (em vão) resistir a tamanho monumento. "Flow" reclama o seu lugar entre os grandes e este felino merece, inteiramente, o estatuto de ícone nacional que tem vindo a ganhar— como evidenciado pela sua escultura, criada pelo artista Kristaps Andersons, sentadinho no Monumento da Liberdade, posicionado sobre as letras que formam o nome "Riga", onde permanecerá até 1 de abril de 2025, sendo posteriormente transferida para a Praça da Câmara Municipal, onde permanecerá até ao final do ano.
★★★★★
Texto de Miguel Anjos
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