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"Ultraje", de Olivier Abbou


Qualquer espetador minimamente atento já terá certamente notado que os distribuidores portugueses se têm encarregado de estrear quantidades bem simpáticas de comédias francesas industriais, garantindo que conhecemos, mais ou menos bem, uma das facetas mais importantes da produção local. Contudo, quem não frequenta festivais é capaz de não saber que os nossos amigos gauleses também são extraordinários a conceber bons thrillers. Felizmente, a Netflix reparou e faz-nos o serviço público de lançar a bomba que é "Ultraje" de Olivier Abbou. Adaptação de uma história verídica que chocou a opinião pública, que acompanha a via sacra percorrida por um casal abastado que acaba por perder a sua casa em circunstâncias francamente bizarras. Se essa descrição peca pela vagueza, é porque o melhor é mesmo mergulhar em "Ultraje" sem saber muito sobre as peripécias que se vão desenrolar, para melhor apreciar a maneira como Abbou transforma um fait diver corriqueiro numa experiência de intensidade implacável, capaz de levar até o mais calmo dos espetadores a roer as unhas como uma adolescente nervosa. Dito de outro modo, estamos perante um conto sufocante e empolgante acerca das componentes mais tóxicas da masculinidade, que é também uma contundente parábola sobre a ténue fronteira que separa a civilização da barbárie, o humano do desumano.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Furie"
Realização: Olivier Abbou
Argumento: Olivier Abbou, Aurélien Molas
Elenco: Adama Niane, Stéphane Caillard, Paul Hamy

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