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CRÍTICA - "A ILHA VERMELHA"


Robin Campillo é um dos cineastas mais emblemáticos da sua geração, no entanto, é tudo menos prolífico. Em 2004, assinou a sua primeira longa-metragem, "Les revenants", um fenómeno de popularidade junto de crítica e público que, tardiamente, até gerou dois remakes no pequeno ecrã, um em França, outro nos EUA (Campillo não esteve envolvido em nenhum dos dois e os resultados, sejamos sinceros, não sustentavam qualquer tipo de comparação com o seu filme). Desde aí, trabalhou consistentemente enquanto coargumentista, principalmente, junto do recentemente falecido Laurence Cantet, por exemplo, em "O Emprego do Tempo" ou "A Turma", mas, como realizador, só o reencontramos em três outras ocasiões ao longo dos últimos 20 anos, em 2013, quando lançou "Eastern Boys", em 2017, ano de "120 Batimentos por Minuto", porventura, o seu melhor filme e, seguramente, aquele que mais mediatismo conseguiu alcançar e, agora, em 2024 (ainda que, em França, o lançamento tenha ocorrido no verão de 2023, mas), com "A Ilha Vermelha".

Nesse sentido, talvez seja prudente começar por dizer que, ainda o mundo não tinha visto um único frame de "A Ilha Vermelha", e já o filme de Campillo parecia assombrado por um "ar de desapontamento", notícias de que o Festival de Cannes se tinha recusado a inclui-lo no seu alinhamento acompanharam praticamente todas as etapas de um lançamento discreto, quase confidencial, um pouco por todo o mundo. Quem vir a forma como "A Ilha Vermelha" foi estreando a conta-gotas, sem nenhum investimento promocional, nem uma carreira no circuito de festivais, nunca adivinharia o pedigree que abrilhanta (ou abrilhantaria) o projeto.


Em retrospetiva, talvez fosse inevitável. O sucesso estrondoso de "120 Batimentos por Minuto" geraria sempre expectativas irrealistas, até injustas, afinal, nenhum cineasta devia ter de corresponder aos momentos mais altos da sua filmografia a cada novo lançamento, contudo, importa ver "A Ilha Vermelha" como um capítulo muito especial no trabalho de Campillo, quanto mais não seja, por remeter para um tempo e espaço muito específicos, inspirados pelas vivências, mais especificamente, pela infância do próprio autor. Neste caso, encontramo-nos em Madagáscar, no início dos anos 70, numa das últimas bases militares francesas. Lá conhecemos Thomas (Charlie Vauselle), um menino de 10 anos, obcecado pela literatura de aventuras, em particular, pelos contos da intrépida heroína Fantômette, cujo olhar necessariamente inocente e ingénuo nos vai guiando por entre os escombros do império colonial francês decadente.

É um filme tremendamente peculiar, oscilando entre um ar de realismo mágico, a remeter para Michel Gondry, uma quietude contemplativa romântica, sensual, hipnótica, a espaços, de cortar o fôlego e uma sensação estranha, inquietante até, de violência latente, quer no contexto social e político, como no doméstico (é ver a crueldade da personagem de Quim Gutiérrez, pai de família que nem sequer parece suspeitar que é uma besta), tudo características que nos fazem pensar numa conterrânea e contemporânea de Campillo, Claire Denis. Ao escolher utilizar o olhar do pequeno Thomas como principal foco narrativo, Campillo consegue dois feitos bastante interessantes, o primeiro é escapar ao "olhar do colonizador", não é um relato imparcial do colonialismo francês, porque a imparcialidade não existe, mas é o testemunho de alguém que é, forçosamente, um outsider, incapaz de entender concretamente que posição ocupa naquele cenário, o segundo é permitir a Campillo explorar a ideia do crescimento de forma pouco convencional, com uma discrição assinável, veja-se, a título de exemplo, a forma como o cineasta evita fazer sublinhados, permitindo-nos reparar nos pequenos detalhes (a distância do pai, hiper-masculino e machista, de Thomas, é sempre notória, ainda que nunca realçada), resultando num arco narrativo comovente, principalmente, por o sentirmos tão genuíno.


No entanto, Campillo não evita inteiramente os sublinhados. É perfeitamente natural e compreensível que o cineasta sinta a necessidade de passar a câmara, até o protagonismo, aos locais, às pessoas que viram o seu país apropriado por terceiros, que os encaravam e tratavam como cidadãos de segunda na sua própria casa, contudo, depois de um momento belissimamente executado (o do soldado bêbado que tenta forçar a rapariga a dançar com ele), onde a melancolia e a raiva coexistem com um sentido de humor que se manifesta num comentário desarmante, o filme falha redondamente, com uma conclusão que parece enfiada a murro, livrando-se das personagens que tínhamos seguido até então por completo (de forma relativamente criativa, cedemos isso), para confirmar aquilo que o filme já nos tinha dado a entender anteriormente. Não é inteiramente mal pensado, podia até ter sido provocador e subversivo, mas, vem tão tarde e é apresentado de forma tão didática, tão maniqueísta, que ficamos com a sensação de saltar de uma interessantíssima abordagem, a meio-caminho entre o cinema autobiográfico e o historicista, explicitando como o pessoal e o político, no fundo, andam sempre interligados, para um filme de mensagem um tanto sensaborão.

O que não invalida que a mensagem em causa tenha o seu valor e que aquilo que Campillo conseguiu até esse final seja impressionante, ocasionalmente, até estarrecedor, plasticamente virtuoso (a fotografia de Jeanne Lapoirie é belíssima) e surpreendentemente sensível no seu retrato da cegueira colonial, sem se poupar na hora de entregar momentos contundentes de absoluto horror. É um filme imperfeito, seguramente o título menos conseguido da obra de Campillo, mas, ainda assim, plenamente merecedor de visionamento e reflexão.

★★★☆☆
Texto de Miguel Anjos

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