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CRÍTICA - "MEU FILHO"


Depois de interpretar treze personagens distintas em "Fragmentado", de M. Night Shyamalan, James McAvoy continua a procurar desafios atípicos. Em "Meu Filho", o francês Christian Carion, que reconheceremos de "Feliz Natal" e "O Caso Farewell", propôs-lhe uma experiência curiosa. Trata-se de um thriller policial, antiquado nos seus moldes narrativos e estéticos, mas ousado na sua execução, uma vez que, McAvoy, o protagonista da trama, nunca leu o argumento, tendo passado todo o processo de rodagem a improvar as suas cenas, de acordo com as indicações gerais que lhe iam sendo providenciadas. Ou seja, e aqui parafraseamos o trailer do filme, em "Meu Filho", McAvoy "descobre cada twist, ao mesmo tempo que o espetador".

Edmond (McAvoy) e Joan (Claire Foy) separaram-se há muitos anos. Ele encontra-se constantemente em viagens de trabalho e, por conseguinte, mantém uma relação relativamente distante de Ethan (Max Wilson), o filho de ambos. Quando Edmond recebe um telefonema desesperado da ex-mulher a dizer que o filho desapareceu durante um acampamento, desloca-se imediatamente para lá. As autoridades depressa se dão conta de que se trata de um rapto e fazem os possíveis por localizar a criança. No entanto, ordens superiores obrigam os detetives a suspender a investigação. Em desespero e sentindo-se culpado pelo sucedido, Edmond entra numa busca desesperada para encontrar o seu filho.

Carion estabelece um clima de tensão que nunca desaparece. Desde os primeiros (e belíssimos) planos dos bosques escoceses que conseguimos sentir que algo de insidioso paira no ar e tanto a realização como o argumento, ambos da autoria de Carion, sabem gerir, manter e prolongar esse sentimento de suspense constante. O desaparecimento de um filho é naturalmente uma situação dantesca e "Meu Filho" sabe transformar esse medo em boa matéria dramática, tecendo uma narrativa envolvente, dir-se-ia, hitchcockiana, onde convivem elementos de melodrama doméstico (o argumento trabalha incansavelmente a relação entre o ex-casal, com uma atenção ao detalhe apurada e um sentido de realismo pungente) com os prazeres do thriller clássico. Inevitavelmente, haverá quem o queira comparar ao primeiro "Taken", no entanto, ao contrário da personagem interpretada por Liam Neeson nesse clássico do cinema de ação contemporâneo, McAvoy não tem nenhum tipo de capacidades especiais que o possam auxiliar na sua odisseia, o que aumenta a tensão imediatamente. Ele é, afinal, um homem normal atirado para uma espiral de circunstâncias que são tudo menos corriqueiras.

Nesse sentido, não há como ignorar a composição de McAvoy. A lógica experimental da qual brotou esta performance atrairia sempre as atenções da imprensa, contudo, mesmo que queiramos colocar esse elemento de lado (e, talvez, devêssemos), não haveria como negar o brilhantismo do trabalho do ator escocês, que torna tangível a dor gritante deste pai desesperado, que necessita de recorrer à sua inteligência para resolver um mistério no qual ninguém parece querer remexer. Se ele falhasse, todo o filme se desmoronaria, mas McAvoy, enquanto estupendo ator que é, não só não desilude, como consegue mesmo surpreender, elevando o filme cena a cena. O mesmo pode ser dito acerca de Claire Foy, que complementa as cenas do seu ex-marido ficcional com excelência, guiando-o por entre cada momento (ela teve ao acesso ao guião) e utilizando todos os pequenos momentos que Carion lhe oferece para expor a vida íntima desta mulher. São duas performances estarrecedoras que, felizmente, surgem no contexto de um filme curiosíssimo, que vale muito a pena não ver e não só por causa do seu fascinante processo de rodagem.

Entretanto, Carion já terminou uma nova longa-metragem, um melodrama com Dany Boon e Line Renaud. Esperemos que os distribuidores portugueses nos permitam vê-lo o quanto antes.

★ ★ ★ ★ ★ 
Texto de Miguel Anjos

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