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Crítica:

"Mudbound: As Lamas do Mississípi"


Durante muitos anos não se falava em racismo no cinema americano. Enfim, um passado marcado por títulos moralmente repreensíveis e uma sociedade ainda demasiado presa a preconceitos antigos, assim o exigiam. Porém, esse tabu começa a ser questionado e, por conseguinte, quebrado por uma nova geração de talentosos cineastas que, não ambicionam vergar-se a costumes ultrapassados. É o caso de Dee Rees, autora deste conto melancólico sobre dois soldados, um branco, outro negro, regressados da Segunda Guerra Mundial, ao Mississípi, no final da década de 40. Cruzando influências clássicas e contemporâneas, a realizadora encena esta odisseia com subtileza e humanismo, como evidenciado pela gestão atenta de um argumento, onde os pontos de vista se vão alternando, para melhor expor uma conjuntura de opressão e marginalização. Da doméstica frustrada de Carey Mulligan, ao homem trabalhador e diligente de Rob Morgan. Em “Mudbound: As Lamas do Mississípi” não há estereótipos, apenas seres humanos de carne e osso, enterrados nas paisagens lamacentas que, a diretora de fotografia Rachel Morrison filma com a elegância rústica que encontraríamos nas pinturas de Whitfield Lovell. Por outras palavras, Dee Rees faz-nos entender o que vai na alma destas pessoas de olhar desolado, num melodrama como Hollywood já não faz ou, se calhar nunca fez. Político, sem cair na mais banal lógica panfletária e, emocional, sem necessitar de manipular desonestamente o espetador. Isto é cinema adulto e, ainda para mais, inteligente.


Realização: Dee Rees
Género: Drama
Duração: 134 minutos

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