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"Os Mortos não Morrem", de Jim Jarmusch


Jim Jarmusch é um autor desconcertante, no melhor sentido, entenda-se. De facto, parece impossível encerrá-lo em qualquer padrão temático, de tal modo a sua obra vai ziguezagueando pelas mais variadas referências. Ele é, afinal, o romântico que encenou “Só os Amantes Sobrevivem”, sobre o reencontro de dois vampiros, desapontados pelos comportamentos decadentes dos humanos que os rodeiam, no entanto, na sua filmografia constam também objetos insólitos como “Paterson”, retrato de um condutor de autocarro, que procura a poesia na banalidade rotineira do seu quotidiano, ou “Ghost Dog: O Método do Samurai”, onde acompanhou o dia-a-dia sanguinolento de um assassino contratado, com um código de honra que o aproxima dos míticos guerreiros japoneses.

Jarmusch permanece um punk, portanto. Um artista desalinhado e inconformado que, à semelhança de contemporâneos seus, como Gregg Araki ou Todd Solondz, continua a combater ou, pelo menos, a lamentar a obliteração do mundo pela cultura de massas, não por ter alguma objeção aos “produtos” gerados pela mesma, mas por sofrer com a marginalização de tudo o resto.

Seguindo essa linha de pensamento, podemos e devemos encarar “Os Mortos não Morrem” como o culminar de todo o seu trabalho, pela forma como mistura o prazer que nutre pela recuperação e reconversão de alguns modelos clássicos (o western em “Homem Morto”, a crónica social em “Para Além do Paraíso”, o thriller em “Nos Limites do Controlo”, etc.), com aquele olhar sempre desencantado pelos tempos modernos (uma componente pouco falada, mas fundamental do seu cinema, é a presença de um intenso sentido de nostalgia). Isto, já para não mencionar um elenco preenchido por amigos e colaboradores de longa data (Bill Murray, Sara Driver, Iggy Pop, RZA, entre outros).



Assim, somos convidados a passar cerca de 48 horas em Centerville. Um pequeno ajuntamento de moradias pitorescas e estabelecimentos comerciais envelhecidos. Certo dia, o camponês Miller (Steve Buscemi), um conservador que vota republicano e se passeia pela cidade com um boné vermelho com a mensagem Make America White Again (traduzido à letra, “Façam da América Branca Novamente”), chama os polícias Cliff Roberston (Bill Murray) e Ronnie Peterson (Adam Driver), para se queixar do roubo de duas galinhas. Miller acha que a culpa é do Ermita Bob (Tom Waits), contudo o segundo declara-se inocente e afasta os agentes a tiro.

Observador atento da natureza e da sociedade a que não quer pertencer, o Ermita Bob começa a notar algumas anomalias que também não passam despercebidas pelos restantes locais. A claridade do dia não desaparece, os animais e insetos agem de forma demasiado agitada e os equipamentos eletrónicos deixam de funcionar. Porquê? Pois bem, porque o governo autorizou perfurações nos pólos em busca de novas fontes de energia. O resultado? A Terra sai do seu eixo de rotação e as vibrações tóxico-lunares providenciam aos mortos a capacidade de se levantarem dos seus túmulos.

Acontece que, além de necessitarem de consumir carne humana, estes mortos-vivos também conseguem lamentar a falta do que amavam em vida e perderam na morte: telemóveis, wi fi, café, vinho…



A metáfora subjacente ao todo é simples, portanto. Ao pertencer a uma sociedade que glorifica a ganância destrutiva dos homens, o materialismo torna-se uma religião e a alienação um estado vegetativo, constante e inescapável. Daí a importância do Ermita Bob. Ao rejeitar os códigos e rituais dos seus congéneres, aceitou viver em comunhão com a natureza e escapou ao círculo vicioso que garante que os mortos nunca morrem, por não terem vivido verdadeiramente. Também, por isso, o vemos sempre de lado, a comentar a ação sem nunca interferir com ela.

A partir dessa ideia, poderíamos extrapolar ligações entre o guião alegórico de Jarmusch e as raízes mais primitivas da fábula, entendida como um processo regressivo que nos conduz a um tempo simbólico em que o fator humano e os seus fantasmas coexistem de modo perverso, no entanto, é mais interessante ver "Os Mortos não Morrem" como uma radiografia moral de um país (de um mundo) à beira do abismo, concebida como uma hilariante e cinéfila comédia fatalista, cuja atitude vai sendo personificada pelo mantra que Peterson repete incessantemente: "Isto vai acabar mal..."

Jarmusch, escusado será dizer, já foi a imagem de um cinema americano jovem, rebelde e marginal. Aos 66 anos continua a sê-lo, porém, talvez, o envelhecimento comece a alterar o seu cinema. E quem sabe se o notável "Os Mortos não Morrem" não é o início de uma segunda fase mais contemplativa e melancólica da sua carreira?


Texto de Miguel Anjos

Título Original: "The Dead Don't Die"
Realização: Jim Jarmusch
Argumento: Jim Jarmusch
Elenco: Bill Murray, Tilda Swinton, Steve Buscemi, Caleb Landry Jones, Iggy Pop, RZA, Selena Gomez, Adam Driver, Chloë Sevigny, Danny Glover, Rosie Perez, Sara Driver, Carol Kane, Tom Waits
Duração: 104 minutos
Distribuidor: NOS Audiovisuais

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