"Os Mortos não Morrem", de Jim Jarmusch
Jarmusch permanece um punk, portanto. Um artista desalinhado e inconformado que, à semelhança de contemporâneos seus, como Gregg Araki ou Todd Solondz, continua a combater ou, pelo menos, a lamentar a obliteração do mundo pela cultura de massas, não por ter alguma objeção aos “produtos” gerados pela mesma, mas por sofrer com a marginalização de tudo o resto.
Seguindo essa linha de pensamento, podemos e devemos encarar “Os Mortos não Morrem” como o culminar de todo o seu trabalho, pela forma como mistura o prazer que nutre pela recuperação e reconversão de alguns modelos clássicos (o western em “Homem Morto”, a crónica social em “Para Além do Paraíso”, o thriller em “Nos Limites do Controlo”, etc.), com aquele olhar sempre desencantado pelos tempos modernos (uma componente pouco falada, mas fundamental do seu cinema, é a presença de um intenso sentido de nostalgia). Isto, já para não mencionar um elenco preenchido por amigos e colaboradores de longa data (Bill Murray, Sara Driver, Iggy Pop, RZA, entre outros).
Assim, somos convidados a passar cerca de 48 horas em Centerville. Um pequeno ajuntamento de moradias pitorescas e estabelecimentos comerciais envelhecidos. Certo dia, o camponês Miller (Steve Buscemi), um conservador que vota republicano e se passeia pela cidade com um boné vermelho com a mensagem Make America White Again (traduzido à letra, “Façam da América Branca Novamente”), chama os polícias Cliff Roberston (Bill Murray) e Ronnie Peterson (Adam Driver), para se queixar do roubo de duas galinhas. Miller acha que a culpa é do Ermita Bob (Tom Waits), contudo o segundo declara-se inocente e afasta os agentes a tiro.
Observador atento da natureza e da sociedade a que não quer pertencer, o Ermita Bob começa a notar algumas anomalias que também não passam despercebidas pelos restantes locais. A claridade do dia não desaparece, os animais e insetos agem de forma demasiado agitada e os equipamentos eletrónicos deixam de funcionar. Porquê? Pois bem, porque o governo autorizou perfurações nos pólos em busca de novas fontes de energia. O resultado? A Terra sai do seu eixo de rotação e as vibrações tóxico-lunares providenciam aos mortos a capacidade de se levantarem dos seus túmulos.
Acontece que, além de necessitarem de consumir carne humana, estes mortos-vivos também conseguem lamentar a falta do que amavam em vida e perderam na morte: telemóveis, wi fi, café, vinho…
A metáfora subjacente ao todo é simples, portanto. Ao pertencer a uma sociedade que glorifica a ganância destrutiva dos homens, o materialismo torna-se uma religião e a alienação um estado vegetativo, constante e inescapável. Daí a importância do Ermita Bob. Ao rejeitar os códigos e rituais dos seus congéneres, aceitou viver em comunhão com a natureza e escapou ao círculo vicioso que garante que os mortos nunca morrem, por não terem vivido verdadeiramente. Também, por isso, o vemos sempre de lado, a comentar a ação sem nunca interferir com ela.
A partir dessa ideia, poderíamos extrapolar ligações entre o guião alegórico de Jarmusch e as raízes mais primitivas da fábula, entendida como um processo regressivo que nos conduz a um tempo simbólico em que o fator humano e os seus fantasmas coexistem de modo perverso, no entanto, é mais interessante ver "Os Mortos não Morrem" como uma radiografia moral de um país (de um mundo) à beira do abismo, concebida como uma hilariante e cinéfila comédia fatalista, cuja atitude vai sendo personificada pelo mantra que Peterson repete incessantemente: "Isto vai acabar mal..."
Jarmusch, escusado será dizer, já foi a imagem de um cinema americano jovem, rebelde e marginal. Aos 66 anos continua a sê-lo, porém, talvez, o envelhecimento comece a alterar o seu cinema. E quem sabe se o notável "Os Mortos não Morrem" não é o início de uma segunda fase mais contemplativa e melancólica da sua carreira?
Texto de Miguel Anjos
Título Original: "The Dead Don't Die"
Realização: Jim Jarmusch
Argumento: Jim Jarmusch
Elenco: Bill Murray, Tilda Swinton, Steve Buscemi, Caleb Landry Jones, Iggy Pop, RZA, Selena Gomez, Adam Driver, Chloë Sevigny, Danny Glover, Rosie Perez, Sara Driver, Carol Kane, Tom Waits
Duração: 104 minutos
Distribuidor: NOS Audiovisuais
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