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"Homem-Aranha: Longe de Casa", de Jon Watts


Passados 11 anos, onde couberam 23 longas-metragens, o MCU (Marvel Cinematic Universe) é hoje um espelho de si mesmo. Uma crónica de eventos cataclísmicos e pequenas aventuras paralelas, que vão expandindo um universo que só tem ganho mais popularidade. Alguns desses títulos vão introduzindo modelos estéticos ou narrativos próprios (pensamos, por exemplo, em “Black Panther” ou “Thor: Ragnarok”), no entanto, torna-se impossível escapar à força gravitacional da continuidade em que se inserem. Isto é, enquanto os acontecimentos que unem os Vingadores gozam de uma escala que alguns apelidariam de “épica”, cabe aos restantes filmes arranjarem uma maneira de não parecerem entradas menores nos cânones da franquia. Nesse sentido, apetece dizer que “Homem-Aranha: Longe de Casa” é tão bem sucedido nessa missão, que quase pudemos encará-lo como uma metáfora para as dificuldades que se apresentam no processo de construção de uma película desta envergadura financeira, havendo mesmo momentos em que o vilão questiona se o seu plano é ou não maquiavélico o suficiente, para ser digno de preocupar os membros da equipa de super-heróis que protegem o planeta Terra.

O seu antecessor, “Homem-Aranha: Regresso a Casa”, já se havia distinguido do restante lote, ao encorajar o protagonista a agir localmente antes de começar a tentar salvar o mundo, assumindo-se primeiramente como um “amigo da vizinhança”. No entanto, este segundo capítulo coloca-o numa situação bem diferente, não fosse “Longe de Casa” a primeira produção Marvel a lidar com as ramificações dos acontecimentos retratados em “Vingadores: Endgame”. Desta feita, encontramos Peter Parker (Tom Holland) num mundo caótico, onde ninguém sabe muito bem como lidar com o súbito aparecimento dos indivíduos que Thanos (Josh Brolin) tinha apagado em “Guerra do Infinito”. Contudo, enquanto jovem pubescente e apaixonado a única preocupação de Peter é utilizar a viagem de finalistas para declarar o seu amor a Mary Jane (Zendaya). Acontece que, a tranquilidade dessa travessia é posta em causa, quando Nick Fury (Samuel L. Jackson) e Maria Hill (Cobie Smulders) lhe pedem auxílio para combater os Elementais, seres que dominam os três elementos naturais e ameaçam colocar término à vida na terra.



Watts recusa-se a cair nas muitas armadilhas formalistas do “cinema espetáculo” contemporâneo, procurando conceber impressionantes sequências de ação que vão alternando entre uma sedutora vertente surrealista (levemente reminiscente do recente “Homem-Aranha: No Universo Aranha”) e a componente física mais habitual do género, mas aquilo que conquista mesmo o público é a leveza do todo. A espaços, “Longe de Casa” consegue mesmo ressuscitar o espírito das velhas comédias de John Hughes (1950-2009), graças a uma extensa galeria de personagens charmosas e consistentemente divertidas, que ainda possuem o bónus de serem particularmente interessantes, do melhor amigo Ned (Jacob Batalon) à concubina Mary, não há uma única nódoa negra no grupo e o cineasta sabe disso, como evidenciado pelas suas incessantes tentativas de os integrar até nos momentos em que edifícios caiem, monstros compostos por água aniquilam pontes históricas e um enigmático guerreiro, a quem chamam Mysterio (Jake Gyllenhaal), voa sobre o caos.

O mais surpreendente para um realizador como Watts, habituado a películas com uma outra intensidade (lembremos que os seus primeiros passos foram dados no território do terror), acaba por ser o quão à vontade se encontra a encenar momentos puramente humorísticos, de onde é necessário destacar uma cena deliciosamente subversiva em que o sempre sério Nick Fury vai sendo constantemente interrompido, enquanto explica a Peter exatamente porque é que necessita que o mesmo faça uma pausa nas suas férias. O que não retira qualquer tipo de poder à componente mais dramática da jornada do nosso herói, aqui personificada pelo fantasma metafórico (uma clarificação sempre necessária em narrativas com elementos fantasistas) de Tony Stark, cujo legado pesa sobre a consciência de Peter. Em última instância, podemos argumentar que, ao encenar a árdua jornada de um rapaz que perde a inocência no momento em que necessita de transitar para a idade adulta, Watts consegue transformar “Longe de Casa”, simultaneamente, num extraordinário espetáculo visual e numa hilariante comédia humanista, que é das melhores propostas que Hollywood nos reservou para o verão de 2019.

Texto de Miguel Anjos

Realização: Jon Watts
Argumento: Chris McKenna, Erik Sommers
Elenco: Tom Holland, Samuel L. Jackson, Jake Gyllenhaal, Marisa Tomei, Jon Favreau, Zendaya, Jacob Batalon, Tony Revolori, Angourice Rice

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