Avançar para o conteúdo principal
"Jojo Rabbit", de Taika Waititi


Adolf Hitler e o seu braço direito Hermann Göring encontram-se no topo de uma torre em Berlim. Hitler diz que gostava de fazer algo que providenciasse um sorriso aos cidadãos, então, Göring responde-lhe com um simples: “Porque é que não saltas daqui de cima?”

Na primavera de 1943, uma trabalhadora fabril foi executada por contar essa anedota a um colega. Porquê mencioná-la? Porque, apesar dos seus esforços violentos e opressivos para manter a sociedade o mais uniformemente austera, os nazis nunca conseguiram impedir os outros de gozarem com os seus pensamentos odiosos e práticas imorais. Todos se lembrarão de O Grande Ditador, onde Charlie Chaplin encarnava o pomposo Adenoid Hynkel, por certo, o momento mais emblemático dessa tendência humorística, contudo, o britânico nem foi o primeiro, nem o último a ridicularizar os fanáticos do Terceiro Reich. A mais recente entrada nesses cânones é Jojo Rabbit. Quinta longa-metragem assinada pelo neozelandês Taika Waititi, que se tem especializado em desconstruir comicamente imaginários sisudos, como o ecossistema vampírico de O Que Fazemos nas Sombras ou os super-heróis em Thor: Ragnarök.


Nesta perspetiva, é fácil identificar a diferença entre Jojo e os seus restantes títulos. Ao contrário dos elementos sobrenaturais que compunham essas narrativas, o Holocausto foi e é uma realidade que merece ser encarada com alguma seriedade. Como tal, mesmo que as intenções sejam as melhores, qualquer tentativa de satirizar esse capítulo insidioso da história da humanidade é, no mínimo, arriscada e, convenhamos, que arrojo não falta ao filme de Waititi, que se propõe a encenar a história de um rapaz (Roman Griffin Davis), entusiasta do regime nazi, que fantasia com um cartonesco Hitler como amigo imaginário (interpretado pelo próprio Waititi) e sonha um dia integrar a força de segurança privada do líder fascista. No entanto, um acidente sanguinolento num acampamento da Juventude Hitleriana, coloca-o em casa a repousar na cama, levando-o a descobrir que a mãe (Scarlett Johansson) mantém uma rapariga judia escondida no sótão de sua casa.


Caso queiramos traçar as origens de Jojo Rabbit temos, porventura, de começar por A Vida é Bela, de Roberto Benigni, outra tentativa de filtrar a realidade perversa do Holocausto pelo olhar inocente da infância. Acontece que, o filme de Benigni era muito mais emocional e gentil, o de Waititi é puramente cínico, o que acarreta vantagens e desvantagens. Por um lado, o seu sentido de humor demente permite-lhe desconstruir a ascensão de Hitler com astúcia e brilhantismo (a maneira como compara a ascensão do fascismo alemão à beatlemania é de uma genialidade absoluta). Por outro, a narrativa aproxima-se tanto do funcionamento meio anedótico de certas sitcoms (podemos estabelecer paralelismos com Family Guy, por exemplo), que as personagens acabam por se reduzir a meras caricaturas, o que apenas piora os momentos em que Waititi decide trazer um pendor trágico a uma saga que, apesar de tudo, existe unicamente como uma brincadeira arrojada. Ainda assim, saudemos a sua ambição, o argumento certeiro na sua sátira e um elenco globalmente formidável, que se compromete por completo à contagiante loucura do projeto. 

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Jojo Rabbit”
Realização: Taika Waititi
Argumento: Taika Waititi
Elenco: Roman Griffin Davis, Thomasin McKenzie, Taika Waititi, Rebel Wilson, Stephen Merchant, Alfie Allen, Sam Rockwell, Scarlett Johansson

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

CRÍTICA - "MEMÓRIA"

Michel Franco é um cineasta empático? O termo raramente lhe foi associado, aliás, títulos como "Nova Ordem" ou "Crepúsculo" levaram muitos a acusá-lo de sadismo, apoiando-se permanentemente num niilismo incessante para encenar as mais abjetas barbaridades. Enfim, temos de assumir que quem levanta essas acusações nunca viu, por exemplo, "Chronic", o seu primeiro filme em inglês, onde não era possível fechar os olhos ao humanismo. Em "Memória", encontramo-lo na sua melhor forma, pronto para confundir os seus detratores, com um filme... "fofinho", devastador é certo, mas, "fofinho" na mesma. É o conto de Sylvia (Jessica Chastain), uma assistente social, profundamente traumatizada pelos abusos sexuais que sofreu, primeiro, às mãos do pai e depois, de um ex-namorado, e Saul (Peter Sarsgaard), cuja vida é moldada e, acima de tudo, condicionada por uma doença degenerativa debilitante. É um conceito, no mínimo, complexo, quanto mais n...