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"Tigertail", de Alan Yang


No segundo episódio da primeira temporada de “Master of None”, a comédia da Netflix criada por Aziz Ansari e Alan Yang, o protagonista Dev (Ansari) e o seu amigo Brian (Kelvin Yu) passam 30 minutos a conversar acerca do fosso entre as suas experiências e as dos pais emigrantes. Por um lado, Dev tem tendência a ser petulante com a mãe, que chegara aos EUA nos anos 80; por outro, Brian tem dificuldades em conectar-se emocionalmente com o pai silencioso, que se encaixa no habitual estereótipo sobre patriarcas asiáticos. O que se segue é uma desconstrução humorística e amorosa das diferenças entre culturas e gerações.

Quando a série estreou em 2015, o episódio intitulado “Pais” foi exaltado como revolucionário pela forma como explorava as dinâmicas entre imigrantes e os seus filhos. Apenas um ano depois, Ansari e Yang ganharam um Emmy por o terem escrito e o segundo aproveitou o discurso para se lamentar acerca da representação de comunidade asiática na cultura norte-americana. “Estamos reduzidos a caricaturas racistas.” Foi também nessa altura que o mesmo começou a trabalhar num outro projeto, que ambicionava expandir o papel desse patriarca asiático estoico, contando uma história do seu ponto de vista.


Assim, começou “Tigertail”, originalmente intitulado “Filme de Família”. Uma abordagem melodramática ao passado do seu próprio pai, encenada com uma poesia reminiscente de Wong Kar Wai ou Edward Yang, que resulta num retrato rico e íntimo de uma realidade que o cinema não tem procurado focar. Na Taiwan da década de 60, Ping-Jui (Hong-Chin no passado, Tzi Ma no presente) lida com as frustrações do seu trabalho fabril, de um casamento arranjado e do seu desejo de encontrar sucesso na América. Muitos anos depois, encontramo-lo divorciado e afastado da filha Angela (Christine Ko) e amargurado pelos seus falhanços pessoais.

Os dois atores que interpretam Ping-Jui vão desenvolvendo uma justaposição deveras fascinante que adensa o mistério. O que lhe aconteceu para transformar aquele sonhador romântico no ser frio e cínico que vamos encontrar no presente? No entanto, o enigma é menos importante que o caminho que percorremos para lá chegar. Yang e o seu diretor de fotografia Nigel Buck pintam a existência do protagonista como uma riquíssima tapeçaria de pequenos acontecimentos que se vão interligando de maneiras curiosas e tocantes, como quando o romance de Ping com Yuan (Yo-Hsing Fang) coincide com a sua descoberta de uma apreciação crescente pela cultura pop americana, que culmina num momento poderosíssimo em que o par central canta e dança ao som de Otis Redding.


Convocando outra narrativa oriental concebida num contexto ocidental, “A Despedida”, o filme Yang dialoga com o de Lulu Wang na medida em que volta a explorar as delicadas conotações da experiência de uma comunidade imigrante, contrastando a componente mitológica do Sonho Americano com a sua eventual evaporação. A partir daí, passamos a acompanhar uma jornada interior, que é tem tanto de profundamente especifica, como de universal. Neste caso, de um homem que tenta compreender como pode encontrar paz, no processo, libertando-se do peso das expectativas que criou para si mesmo.

Porém, enquanto “A Despedida” encarava o impacto de uma geração envelhecida (e dos seus costumes) na que a seguiria, Yang captura a outra vertente dessa mesma equação. Isto é, as convulsões dessa geração anterior que, outrora, se encheu de entusiasmo para explorar o mundo só para descobrir que o mesmo não os receberia nos mesmos termos. Encenado com subtileza e humanismo, sem nunca resvalar para sentimentalismos gratuitos, “Tigertail” consegue comover genuinamente, enquanto nos providencia uma janela para uma cultura que permanece quase completamente desconhecida. E, que fique dito, se a conclusão catártica e transcendente não lhe roubar uma lágrima, então, é pouco provável que algo consiga fazê-lo.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: "Tigertail"
Realização: Alan Yang
Argumento: Alan Yang
Elenco: Tzi Ma, Hong-Chi Lee, Christine Ko

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