"UMA MIÚDA COM POTENCIAL", DE EMERALD FENNELL
O movimento #MeToo veio chamar a atenção para temáticas que sempre conhecemos, mas nunca tivemos a coragem de discutir. Afinal, o assédio, ou pior, a violação, são temas extraordinariamente pesados, que causam desconforto em quase todos nós. No entanto, o cinema nunca se evidenciou amedrontado por eles. Pelo menos, desde 1972, ano de estreia do infame "A Última Casa à Esquerda", que deparamos frequentemente com histórias que se interessam em confrontar esses crimes sem pruridos. Convenhamos, que as abordagens nem sempre são as mais delicadas (o que não aí falta são realizadores que procuram a fama por via do choque), contudo, qualquer espetador minimamente atento já terá encontrado títulos de imenso valor nessa maré.
Nesse sentido, "Uma Miúda Com Potencial" não é exatamente uma novidade pela sua temática (nem mesmo num mundo pós-#MeToo), mas é bem capaz de ser o primeiro filme que ousa remover qualquer tipo de estímulo visual do ecrã. Isto é, contrariando a tendência de elaborar narrativas focadas na profanação da carne, a argumentista e realizadora Emerald Fennell concebe um filme desprovido de nudez e sanguinolência, onde todos os eventos se baseiam na sugestão, naquilo que vamos ouvindo ou intuindo, sem que alguma vez haja a necessidade de explicitar as ações da heroína ou os crimes dos vilões. Se isso parece um detalhe secundário, então, importa reconhecer que não é. Ao escapar às convenções do género, "Uma Miúda Com Potencial" torna-se num thriller puramente cerebral sobre os avanços sexuais indesejados como uma demonstração opressiva de poder. Como Oscar Wilde famosamente afirmou, "tudo na vida é sobre sexo, exceto o sexo que é sobre poder".
Cassie (Carey Mulligan) é uma personagem atípica. Uma mulher de quase 30 anos que ainda vive com os pais, apesar de nos assegurarem que o seu percurso académico se pautou pela excelência, serve à mesa numa cafetaria e mantém um estranho ritual. Todas as noites, aperalta-se, dirige-se a um bar, finge estar embriagada e deixa que algum homem se aproxime. Invariavelmente, há sempre um "bom samaritano" que decide levá-la para a sua casa e tirar partido do seu estado debilitado, desconhecendo que ela apenas se encontra à espera do momento certo para os confrontar com a natureza dos seus atos.
Num feito de equilíbrio tonal que traz à mente o brilhante "Foge" (2017), de Jordan Peele, Fennell concebe um filme que nunca se compromete a um único género. A primeira sequência tem ares de terror, contudo, a saturação de cores (com o cor-de-rosa a assumir uma presença recorrente) e a utilização constante de êxitos esquecidos da música pop (de Paris Hilton a Britney Spears), criam um visual e uma ambiência que associamos maioritariamente à comédia romântica, o que apenas adensa o choque que se apodera de nós quando o terceiro ato se converte num thriller altamente perturbador. É mesmo caso para repescar um velho chavão publicitário que Hollywood costumava utilizar por tudo e por nada e dizer que "Uma Miúda Com Potencial" é uma verdadeira montanha-russa de emoções.
Entende-se, portanto, que Emerald Fennell tenha colhido inúmeros prémios pelo seu argumento complexo e perspicaz, sempre disposto a dissecar situações limite com um sentido de humor tóxico e subversivo, no entanto, importa reconhecer que o funcionamento do mesmo dependeria sempre de um elenco dedicado que soubesse e/ou conseguisse domar as nuances destas personagens. Por mais caricatos que possam ser os acontecimentos que testemunhamos, nunca nos sentimos perante um conjunto de seres pitorescos que habitam um universo meramente ficcional, pelo contrário, atores como Carey Mulligan, Bo Burnham ou Molly Shannon enraízam até as maiores extravagâncias numa realidade imediatamente reconhecível, demonstrando que ainda há mesmo cineastas que sabem que não há efeito visual mais expressivo e impressionante que os os corpos dos que se predispõem a representar.
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