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 "Spiral: O Novo Capítulo de Saw", de Darren Lynn Bousman


Em 2003, "Saw - Enigma Mortal" mudou por completo o panorama do cinema de terror, introduzindo uma imprevisível combinação de sanguinolência e inteligência. A premissa era simples, dois homens acordavam num WC decadente, acorrentados à canalização, com um cadáver entre eles. Como ali foram parar? E, porventura, mais importante, como podem escapar? Utilizando tuta e meia de atores inexperientes (exceção feita aos veteranos Cary Elwes e Danny Glover) e os parcos meios que se conseguiram arranjar à altura, James Wan desenvolveu um dos títulos mais intensos e surpreendentes (a reviravolta final é inesquecível) em memória recente e também um franchise que nunca desapareceu por completo. Exemplo disso mesmo é "Spiral", nono filme enraízado no universo do serial killer John Kramer (conhecido pelas autoridades, vítimas e aprendizes pela alcunha Jigsaw), que se propõe a abrir um novo capítulo nos seus cânones, reconhecendo os eventos dos filmes anteriores, sem recuperar as suas personagens.


Tudo acontece em torno Ezekiel Banks (Chris Rock), um polícia que denunciou um colega corrupto aos seus superiores e, desde então, tem sido sistematicamente marginalizado pelos restantes agentes que o vêem como um traidor. Certo dia, ele e o seu parceiro (Max Minghella) são incumbidos de investigar o homicídio cruel de um companheiro de trabalho às mãos de alguém que parece querer imitar os métodos de Jigsaw. No entanto, mal sabem eles que este assassino tem planos bastante ambiciosos, nos quais o íntegro Ezekiel desempenhará (voluntariamente ou não) um papel fundamental...

À semelhança dos seus predecessores, "Spiral" volta a refletir sobre a importância da moralidade, desta feita, tendo como alvo a corrupção policial, desenhando um retrato contundente (e, escusado será dizê-lo, muito atual) de um departamento repleto de figuras que abusam da sua autoridade, consoante lhes é conveniente. Contudo, desenganem-se os que pensam que o realizador Darren Lynn Bousman se contenta com o maniqueísmo clássico dos "muito bons" e "muito maus", pelo contrário, em "Spiral" encontramos personagens ricas, repletas de nuances que apenas se vão adensando com o avançar da duração. Nesse sentido, não há como não destacar Chris Rock, protagonista, coargumentista e produtor executivo, que aparentemente sempre sonhara integrar o elenco de um filme da franquia, desde a sua introdução com um monólogo hilariante sobre "Forrest Gump" (reminiscente do debate que os mafiosos de "Cães Danados" têm sobre a canção "Like a Virgin" no princípio desse clássico) até ao momento em que o vemos a soltar a sua raiva perante uma esquadra corruída pelos males da corrupção, a performance de Rock possui uma qualidade quase revelatória, evidenciando que o seu desempenho na quarta temporada de "Fargo" foi apenas o início de uma nova fase, mais séria, mas nem por isso menos mordaz da sua carreira.

Posto isto, porque nenhum "Saw" se faz só de considerações morais, há que mencionar que o veterano Bousman, autor do segundo, terceiro e quarto filmes da saga, mantém todos os elementos que a ela associamos intactos, das armadilhas sangrentas e altamente criativas às reviravoltas constantes, jogando permanente com aquilo que sabemos e as informações que desconhecemos. Num mundo pandémico é tudo menos garantido que os resultados de bilheteira justifiquem uma continuação, mas uma coisa é certa, nenhum fã sairá desapontado.

Texto de Miguel Anjos

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