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CRÍTICA - "STARS AT NOON - PAIXÃO MISTERIOSA"


Uma semana depois de "Com Amor e Com Raiva", reencontramos Claire Denis nas nossas salas de cinema. "Stars at Noon", baseado no romance homónimo de Denis Johnson, é a sua segunda longa-metragem em língua inglesa, no entanto, desenganem-se os que assumirem que a proximidade de Hollywood aligeirou o toque de Denis, levando-a a assinar algo mais "acessível"...

De facto, à semelhança do que ocorria em "High Life", a presença de atores reconhecíveis do grande público, devidamente acompanhada por elementos provenientes do cinema de género (aí, o conceito enraizava-se na tradição da ficção-científica, aqui percorremos os caminhos labirínticos das narrativas de espionagem), apenas reitera a universalidade dos temas explorados no seu cinema.


Trish (Margaret Qualley), uma (autoproclamada) correspondente norte-americana na Nicarágua, tem que voltar aos EUA. No entanto, uma confluência de impedimentos políticos, sociais e financeiros, impedem-na constantemente de o fazer, levando-a a manter encontros pontuais com o Subtenente Veráguas (Nick Romano), que lhe providencia dinheiro e outros favores em troca de sexo, permitindo-lhe pagar a conta do motel decadente onde (sobre)vive e os litros álcool que consome recreativamente (ou como um mecanismo anestesiante, auxiliando-a a suportar a natureza opressiva do seu quotidiano).

Um dia, enquanto saltita de bar em bar, encontra Daniel (Joe Alwyn num papel que a pandemia "roubou" a Robert Pattinson), um britânico que ali se encontra trabalho. O marketing convencer-nos-ia que se apaixonam ("Paixão Misteriosa", o subtítulo manhoso que o distribuidor português lhe atribuiu, segue nesse sentido), contudo, o que acontece realmente é muito mais complexo, Trish e Daniel têm uma vida fora da Nicarágua (embora saibamos pouco, muito pouco sobre o assunto), que nunca incluirá o outro, no entanto, naquele momento, necessitam de alguém, não é amor, ainda que, aqui e ali, se pareça aproximar disso, mas sim, desespero.


Aliás, a "união" puramente transacional entre Trish e Daniel é representativa de todas as restantes relações que encontraremos em "Stars at Noon", um filme que, como costuma acontecer no cinema de Denis, se desenrola, simultaneamente, num período específico e num tempo suspenso, onde o passado nunca aconteceu e o futuro permanece eternamente fora de alcance. Trata-se, portanto, de um purgatório terreno, com contornos políticos firmemente demarcados, em que Trish e Daniel se veem encarcerados, quiçá, para todo o sempre. Nessa paisagem entediante e opressiva, onde todos esperam por alguma coisa (não são só os nossos protagonistas, basta ver como os nicaraguenses sonham com umas eleições sucessivamente adiadas, que o tempo revelará como uma possível miragem), abraçar o hedonismo é a única maneira de enganar a alma, mas, só momentaneamente...

Nesse sentido, "Stars at Noon", mais que qualquer filme de Denis desde "White Material" (também centrado numa mulher estrangeira num ambiente que lhe é estranho e até hostil), é um intrincado, deslumbrante e intoxicante bailado, colocando Qualley e Alwyn a deambular erraticamente por uma paisagem indiferente, seduzindo-se e iludindo-se mutuamente, como os tende a suceder com os (anti)heróis do cinema desencantado, mas profundamente humano de Denis. Se "Stars at Noon" hipnotiza e arrebata em muito se deve também a eles. Ainda não é desta que a cineasta de "Beau Travail" e "Trouble Every Day" conquistará o coração do espetador casual (muito menos dos seus detratores), contudo, quem já se converteu a esta fé, terá muito gosto em presenciar esta nova missa...

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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