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CRÍTICA - "AFTERSUN"

Primeira longa-metragem de Charlotte Wells (precederam-se-lhe as curtas "Tuesday""Laps" e "Blue Christmas"), "Aftersun" tem desencadeado muito entusiasmo desde a sua passagem pelo Festival de Cannes (inexplicavelmente, passou ao lado da Competição Oficial, tendo sido "circunscrito" à Semana da Crítica), conseguindo mesmo ultrapassar as limitações comerciais inerentes à sua condição de pequena produção independente, desenvolvida muito longe dos holofotes de Hollywood. Porquê? Pois bem, resumindo de forma necessariamente simplista, porque "Aftersun" é uma proeza rara, raríssima, uma ficção de pendor autobiográfico que nos atira para um turbilhão (não linear) de acontecimentos que se entranham na nossa epiderme, na nossa alma, como se se tratassem de memórias só nossas.

Durante o visionamento, pensamos em Claire Denis ("Beau Travail", em particular, havendo mesmo um plano que remete para uma das imagens mais reconhecíveis desse filme), Chantal Akerman (Wells é a primeira a reconhecer a influência de "News From Home") e, a espaços, até em Terrence Malick (quiçá, o cineasta que melhor trabalhou a memória como matéria-prima fílmica), no entanto, "Aftersun" é tudo menos uma regurgitação de influências, possuindo uma energia (ou melhor, uma aura) tremendamente singular, provavelmente, acentuada pela proximidade entre a realizadora, também autora do argumento, e o tema.

Nele, aparentamos andar pelos anos 90 (ninguém o especifica, mas, a música que ouvimos naqueles ambientes, a falta de telemóveis e outros tantos sinais apontam para aí), quando Calum (Paul Mescal numa performance tremenda, que, por si só, confirma o seu estatuto de estrela em ascensão), leva a filha Sophie (Frankie Corio, uma revelação absoluta) a um complexo turístico decadente na Turquia. 20 anos depois, Sophie relembra e repensa aqueles dias, entendendo (ou tentando entender) o tormento invisível que perseguia o pai e permitindo-se ver tudo aquilo que a sua tenra idade não a deixou perceber à data.

Estabelecendo uma atmosfera inquietante mesmo nos momentos mais prosaicos (sentimos sempre que a tragédia é iminente, quando, na realidade, o horror já se desenrola, silenciosamente, em cada cena, cada plano), Wells constrói um filme que escapa a todos os clichés, saltitando (melancolicamente) entre passado e presente, realidade e onirismo, que evoca a natureza fragmentada e efémera da memória, resultando numa experiência inequivocamente sensorial, capaz de hipnotizar e, acima de tudo, comover qualquer espetador que esteja disposto a abrir-se à sua ousadia formal.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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