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CRÍTICA - "A SINDICALISTA"

Em 2020, o cineasta Jean-Paul Salomé dirigiu Isabelle Huppert em "Agente Haxe" (no original, "La Daronne"). Os constrangimentos desencadeados pela conjuntura pandémica dificultaram o lançamento do filme, eventualmente, recebido pela crítica com um encolher de ombros e ignorado pelo público. Resumindo, "Agente Haxe" não foi um sucesso. No entanto, Salomé e Huppert desenvolveram uma amizade que os levou querer trabalhar juntos novamente.

Assim, nasceu "A Sindicalista", um thriller baseado em factos verídicos, onde Huppert dá corpo a Maureen Kearney, a sindicalista titular, que foi intimidada e violentada por estranhos em sua casa, após denunciar a existência de um contrato secreto com a China, que iria desmantelar a Areva, a maior empresa francesa estatal do setor nuclear com expressão europeia, lançar milhares de pessoas para o desemprego e transferir tecnologia para aquele país. Uma situação que rapidamente se virou contra ela, já que a polícia, na sequência de uma investigação desleixada e irresponsável, a transformou de vítima em acusada de fabricação, forçando-a a defender o seu bom nome.

Salomé orquestra esta "queda de dominós" com a urgência, eficácia e intensidade dos melhores "filmes de denúncia" (na linha do cinema de Costa-Gavras, por exemplo), levando os membros do público numa viagem guiada pelas zonas de penumbra da política contemporânea (europeia ou não), que disseca a crueldade, hipocrisia e até a misoginia casual daquele mundo, onde a moralidade nem sempre tem lugar. Isto, sem nunca ceder a maniqueísmos bacocos ou panfletarismos simplistas.

Numa bonita homenagem a Kearney, que só muito tardiamente viu o seu nome "redimido" em praça pública, Huppert faz-lhe inteira justiça, numa composição de invulgares nuances emocionais, a meio-caminho entre a vulnerabilidade e o estoicismo, que deslumbra e muito. No entanto, não é a única interpretação digna de nota, num elenco que é um verdadeiro "quem é quem" do cinema francês atual e, para não nos alongarmos, mencionemos apenas um outro nome, Grégory Gadebois, um magnífico ator em estado de graça, na comovente personagem do marido rockabilly de Kearney.

"A Sindicalista" tem tudo para passar ao lado nas nossas salas, mas, é um destino injusto para um filme tão surpreendente. Tenham a bondade de o descobrir.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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