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CRÍTICA - "UMBERTO ECO - A BIBLIOTECA DO MUNDO"


"Umberto Eco - A Biblioteca do Mundo" providencia-nos a oportunidade de habitar na órbita de Umberto Eco (1932-2016), com uma particularidade tremendamente interessante. Acontece que, o documentário de Davide Ferrario não é um olhar sobre o autor de títulos como "O Nome da Rosa" (1980) ou "O Pêndulo de Foucault" (1988), mas sim, do intelectual, ou melhor, do amador, no sentido mais antiquado e, porque não, romântico do termo, isto é, aquele que ama incondicionalmente e procura partilhar "o objeto do seu afeto" com os demais.

É que, mais que um leitor ávido, Eco era também um verdadeiro cultor do livro, precisamente, enquanto objeto físico, tátil. Essa convicção, correção, esse amor, levou-o a construir uma biblioteca privada, onde constam, aproximadamente, 30.000 livros contemporâneos e mais de 1500 mais antigos e difíceis de encontrar. O título do filme de Davide Ferrario"A Biblioteca do Mundo", adquire, portanto, um sentido literal, mas também simbólico, afinal, Eco acreditava que, ao percorrermos às páginas de um livro, podíamos entrar em contacto, quem sabe, até dialogar com a memória (e o imaginário) da humanidade no seu todo.

Ferrario, que colaborou com Eco em 2017 numa instalação sobre o tema da memória para o pavilhão italiano da Bienal de Veneza, conseguiu, acima de tudo, criar um retrato documental que captura lindamente o espírito do seu sujeito. "A Biblioteca do Mundo" partilha a eloquência de Eco, o seu sentido de humor e, naturalmente, a relação fetichista que mantém com os suportes físicos. A certo ponto, Eco menciona a curiosidade intelectual como uma condição intrínseca à vida, literalizando mesmo a sua analogia, ao implicar só estando morto é possível perdê-la, uma conclusão, simultaneamente, brincalhona, porque acompanhada por um pequeno, pequeníssimo sorriso, e provocadora, esse meio-termo, charmosamente idiossincrático, serviu de casa a Umberto Eco e é lá que Ferrario nos leva. Não saímos com a sensação de ter privado com ele, mas sim, com as suas ideias, a sua forma de ver o mundo.

Se há uma certa vertigem na quantidade de informação visual e sonora que Ferrario concentra no seu filme? Certamente, no entanto, se, noutro contexto a abundância poderia distrair do essencial, aqui promove uma corrente de ideias que dão o retrato fiel de um homem. Alguém que se referia ao seu romance mais célebre, o supracitado "O Nome da Rosa", com uma certa irritação espirituosa, afirmando que este ofuscou todos os seus outros livros, que lhe parecem francamente melhores... De alguma forma, "A Biblioteca do Mundo" vem lembrar que legado de Eco, sendo, inquestionavelmente, uma das mais marcantes figuras da cena cultural na segunda metade do século XX, é muito mais do que uma história de monges na Idade Média. Ele encarna, como poucos, o elogio da curiosidade humana e a bibliofilia como uma promessa de futuro. Neste belíssimo filme, de apenas 86 minutos, Ferrario continua a sua missão, transmitindo o bichinho da vontade de apreciar a literatura na sua condição analógica, com amor e gáudio, mas, sem nostalgia, porque, como Eco faz questão de afirmar e reiterar, os livros, em suporte físico, claro está, não são uma coisa do passado.

★ ★ ★ ★ 
Texto de Miguel Anjos

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