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CRÍTICA - "ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES"


À semelhança de "Silêncio" e "O Irlandês"Martin Scorsese necessitou de batalhar arduamente para concretizar "Assassinos da Lua das Flores". Em 2017, foi anunciado que ScorseseLeonardo DiCaprio e Robert De Niro se tinham juntado ao projeto, tendo como base o livro homónimo de David Grann, adaptado por Eric Roth, argumentista veterano que reconhecemos, por exemplo, de "Dune""Assim Nasce Uma Estrela""O Estranho Caso de Benjamin Button" ou "Munique". No entanto, "Assassinos da Lua das Flores" tornou-se demasiado dispendioso, levando a Paramount "a abandonar o barco".

Em 2020, a Apple, cheia de vontade de se afirmar como uma alternativa viável aos estúdios previamente existentes (incluindo a Netflix ou a Amazon Prime Video), repescou o filme do limbo em que havia tombado. Contudo, os problemas não acabaram aí. É que, depois de extensas conversas com os membros da tribo indígena Osage, Scorsese e DiCaprio entenderam que o argumento tinha a perspetiva errada. "Assassinos da Lua das Flores" foi, portanto, completamente reinventado e, só agora, podemos vê-lo.

Assim, o protagonista deixou de ser Tom White (Jesse Plemons), o agente do FBI que comandou a investigação à "epidemia" de homicídios que assolou a tribo Osage na viragem do século XX, mas sim, Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), que volta da Primeira Guerra Mundial, onde trabalhou como cozinheiro, para o Oklahoma, onde vive William Hale (Robert De Niro), o seu tio. Ernest é um oportunista, mas, também é um sujeito ingénuo, pouco inteligente e tremendamente saloio, que, claramente, sente uma necessidade inescapável de satisfazer os desejos de William.


Portanto, quando o tio lhe recomenda que dê uma boleia a Molly (Lily Gladstone), ele fá-lo sem pensar duas vezes. As intenções de William são tudo menos inocentes. A descoberta de petróleo nas terras dos Osage providenciou-lhes riquezas inimagináveis, desencadeando inveja e sanguinolência. O plano de Hale, que fala a língua dos Osage fluentemente e tudo faz para que o vejam como um aliado insuspeito, é simples, casar Ernest com Molly, para que ele possa herdar as terras da sua família quando morram... No entanto, esses falecimentos começam a acumular-se e não só no interior da família de Molly.

Muito se tem falado da duração de "Assassinos da Lua das Flores". De facto, os seus 206 minutos podem parecer intimidantes, mas, são inteiramente necessários para traduzir todos detalhes de uma história extremamente complexa, que, de uma forma ou de outra, convoca praticamente todos os fantasmas dos EUA (o Klu Klux Klan, o Massacre de Tulsa, o genocídio do povo ameríndio, etc.), incluindo aqueles que os norte-americanos ainda não sabem como encarar.

Em 1990, Scorsese "abria" o seu "Tudo Bons Rapazes" colocando a personagem de Ray Liotta a confessar algo, no mínimo, inusitado, "desde que me lembro, sempre quis ser um gangster". A violência encontrava-se, inerentemente, inscrita no tecido cultural em que se desenvolveu aquela pessoa e, como na tragédia grega, era impossível escapar-lhe. Em "Assassinos da Lua das Flores" acontece o mesmo, William Hale e Ernest Burkhart não podiam ser mais distintos, mas, os laços sanguíneos aproximam-nos e, a partir daí, "talvez" descubram numa ganância amoral um ponto em comum.


"Talvez" porque num dos apontamentos mais perturbadores de "Assassinos da Lua das Flores" é questionável que Hale e Burkhart reconheçam sequer a vilania das suas ações, em particular, o primeiro, cujo discurso (à porta fechada, claro está, não vá levantar suspeitas) desumaniza os Osage com uma condescendência impensável, ele não pode ter consciência da sua crueldade porque, aos seus olhos, os Osage não são gente de carne e osso, igual a ele, apenas obstáculos a caminho de apetecíveis riquezas.

Na criação dessa personagem abominável, De Niro é exemplar, o seu Hale prima pela inteligência e a parcimónia, a sua conduta é aberrante, mas, o ator (e o argumento de Roth, naturalmente) nunca o deixam cair na caricatura, consequentemente, o resultado é tanto mais perturbador, afinal, é sempre mais confortável imaginar que o Mal é estridente e exagerado, quanto mais não seja, porque isso o impossibilita de se esconder e passar despercebido por entre os interstícios das nossas interações quotidianas. Já DiCaprio consegue aquela que pode ser a sua melhor performance, abdicando de tudo aquilo que associamos ao seu estatuto de estrela de cinema, para dar corpo a um homem que se parece ir desintegrando ao longo do filme, à medida que o seu parco intelecto (acompanhado, naturalmente, por aquela soberba que as pessoas muito burras tendem a ter) vai sendo moldado pelas várias forças (quase sempre malignas) que o rodeiam.

Mas, o coração do filme pertence às suas vítimas, os Osage, particularmente, a dois atores de primeiríssima água em estado de graça, como são Lily Gladstone, uma das presenças mais empáticas do cinema moderno, e a revelação absoluta que é William Belleau, dando corpo, voz e, acima de tudo, alma ao sofrimento dos Osage ao longo dos anos, são vários os momentos em que o nosso olhar se cruza com o deles, melancólico, magoado, dilacerado. Em última instância, apetece dizer que, mais do que interpretar personagens, eles carregam o peso de uma história dura, duríssima, a que não é possível ficar indiferente.

Só para os ver, já valeria a pena o preço do bilhete, mas, "Assassinos da Lua das Flores" tem mais, muito mais para nos oferecer, é uma epopeia histórica, de uma assentada, expansiva e íntima, um western pós-moderno, como era, por exemplo, "Às Portas do Céu", de Michael Cimino, um filme de fantasmas (interiores, é certo), que exorciza a violência e o ódio que corroem os Estados Unidos, ontem como hoje, fazendo jus às vítimas, sem sensacionalismos, nem tentativas espetacularizar o que foi, e é, uma tragédia absoluta.

Um filme notável, dos melhores que veremos este ano e, com uma conclusão, que é das mais belas que Scorsese já arranjou. Imperdível.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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