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CRÍTICA - "ÁCIDO"


Em "A Nuvem dos Gafanhotos", de 2021, a primeira longa-metragem de Just Philippot, os humanos eram vítimas dos avanços predatórios da natureza. Dois anos depois, Philippot regressa com um filme em tudo diferente, por um lado, porque é mais "caloroso", à falta de um melhor termo, um contraponto ideal à frieza da "Nuvem", por outro, porque chega às salas de cinema, não muitas é certa, mas, entre a sua passagem pelo MOTELX, foi o "Filme de Encerramento" da 17ª edição do certame, e os 12 multiplexes que o exibirão, já estamos muito melhor do que estávamos quando "A Nuvem dos Gafanhotos" foi abandonado à sua sorte na Netflix, sem pompa, nem circunstância.

"Ácido" começa como um filme político (se calhar, até é...), com um motim numa fábrica. A "liderar" os trabalhadores descontentes, está Michal (Guillaume Canet), que, não demoramos a saber viu a sua vida reduzida a cacos depois do sucedido. Divorciou-se, perdeu o emprego e ficou com uma pulseira electrónica na perna, cingindo as suas deslocações a casa-trabalho, trabalho-casa. Um dia, durante uma onda de calor francamente suspeita, quanto mais não seja, porque o céu parece permanentemente nublado, chuva ácida começa a cair do céu, forçando Michal a abandonar o emprego e ir procurar Selma (Patience Munchenbach), a filha adolescente.


Reminiscente de "O Acontecimento", de M. Night Shyamalan, ainda que, sem o sentido de humor estrambólico que permeava esse filme, "Ácido" assume-se, então, como um road movie, colocando Michal, Selma e Elise (Laetitia Dosch), a matriarca daquela unidade familiar decadente, a correr por França, em busca de um suposto porto seguro que pode ou não existir. Philippot entende que, no que diz respeito ao cinema de terror, poucos elementos se comparam, em importância, à construção de uma atmosfera da qual não podemos escapar. "Ácido" é intenso, fervoroso mesmo, desde os primeiríssimos instantes, convocando-nos, de imediato, para a seriedade das circunstâncias que aquelas personagens experienciam.

Felizmente, também se lembrou de criar personagens fascinantes, a começar por Michal. Canet é uma figura omnipresente na paisagem contemporânea do cinema francófono, seja como ator ou cineasta, mas, raramente lhe permitiram ser tão fascinante como aqui. Michal escapa todos os clichês, é um pai preocupado, mas, tudo indica que colocaria Selma de lado imediatamente se isso lhe permitisse chegar mais depressa a Karin (Suliane Brahim, protagonista de "A Nuvem dos Gafanhotos"), sua namorada, ao mesmo tempo, parece um homem digno, com princípios bem vincados, contudo, esses mesmos princípios levam-no, frequentemente, a assumir uma posição de superioridade moral, não raras vezes, utilizando-a como uma arma para menorizar os outros. É uma personagem tremendamente complexa, de infinitas nuances, a que Canet dá vida lindamente, de vez em quando, vemos um intérprete no topo do seu métier, acertando em toda a linha, sem nunca sequer se aproximar de falhar uma nota, é o que Canet nos oferece aqui.

★★★★
Texto de Miguel Anjos

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