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CRÍTICA - "FERIADO SANGRENTO"

Em 2007, Quentin Tarantino e Robert Rodriguez voltaram a trabalhar juntos, depois de "Quatro Quartos" e "Aberto até de Madrugada", num projeto tremendamente invulgar: "Grindhouse". Tratava-se de uma homenagem ao cinema de série Z e às salas que o exibiam, normalmente, em sessões duplas, regadas de nudez e sanguinolência. O "bom gosto" não era para ali chamado.

Assim, começávamos com "Á Prova de Morte", de Tarantino, e terminávamos com "Planeta Terror", de Robert Rodriguez, pelo meio, algumas brincadeiras, em jeito de piscadela de olho à época, incluindo um conjunto de trailers falsos, incluindo "Machete", também de Rodriguez"Werewolf Women of the SS", de Rob Zombie"Don't", de Edgar Wright"Hobo With a Shotgun", de Jason Eisener, e "Thanksgiving", de Eli Roth.

"Grindhouse" conquistou alguns e alienou outros, no entanto, quem saiu apaixonado pela experiência, ficou com vontade de ver esses trailers falsos transformados em longas-metragens verdadeiras. Aconteceu com "Machete", em 2010, com "Hobo With a Shotgun", em 2011, e, agora, com "Thanksgiving", que, depois de muitos avanços e retrocessos, chega finalmente aos nossos ecrãs, em Portugal, batizado como "Feriado Sangrento".

Estamos em Plymouth, no Massachusetts, no Dia de Ação de Graças. Supostamente, as famílias preparar-se-iam para comemorar a primeira refeição entre os peregrinos e os ameríndios, contudo, o que interessa mesmo aos habitantes daquela localidade é a Black Friday que, excecionalmente, começará uma noite mais cedo, devido à ganância de Thomas Wright (Rick Hoffman), dono da maior superfície comercial de Plymouth, que chateou (e muito) os seus empregados ao decidir abrir a loja na noite do feriado. Infelizmente, tudo corre mal, a loucura consumista dos fregueses leva a uma série de acontecimentos extremamente violentos e Wright escolheu não investir em seguranças.

Um ano depois, um serial killer, mascarado de peregrino, começa a assassinar, com requintes de malvadez, muitos dos envolvidos no sucedido, um por um, e deixa uma promessa, este ano, o jantar de Ação de Graças não deixará restos...

Roth, pupilo de Tarantino, autor de culto e homenageado no MOTELx, sempre nos serviu "bifes mal-passados" (cinematograficamente falando, isto é), a sanguinolência, tripas e mioleira são elementos indissociáveis do seu trabalho, no entanto, títulos como "A Cabana do Medo""Hostel" ou "Inferno Canibal" não podem ser resumidos a meros exercícios de sadismo, uma vez que, a acompanhar o espetáculo grand guignol há sempre um subtexto político ou social, filtrado pelo sentido de humor inconfundível de Roth.

"Feriado Sangrento" é um olhar satírico sobre o consumismo no mundo contemporâneo. Isso nota-se logo nos primeiros instantes, quando Roth torna uma Black Friday numa espécie de mini-massacre, é violento, caótico e, acima de tudo, muito engraçado. À semelhança de "Hostel", onde os berbequins e motosserras serviam de metáfora para o capitalismo desgovernado, "Feriado Sangrento" só necessita de exagerar ligeiramente o que retrata, porque a realidade, há muito, adquiriu contornos rocambolescos.

Daí que a sequência "massacre na Black Friday" nos proporcione tantas gargalhadas. Se é uma réplica exata da realidade? Provavelmente não, ainda que todos já tenhamos lido sobre episódios similares, mas, isso não interessa nada. Em última instância, o toque de génio de "Feriado Sangrento" advém da maneira como Roth transforma um slasher, em teoria, arquetípico e, consequentemente, familiar, numa farsa deliciosamente mordaz, que lhe permite rir na cara do consumismo norte-americano. Roth não se fique por aí, da idiotice dos influencers infantojuvenis à ganância dos comerciantes, passando pela estupidez da América neoliberal, ninguém sai ileso desta divertidíssima sátira.

Portanto, reserve uma viagem a Plymouth, Massachusetts, onde os diners têm empregadas tremendamente antipáticas, as cheerleaders das escolas secundárias são mal-educadas e os adolescentes têm uma ignorância atroz em relação à cultura pop, a sanguinolência é muita e as gargalhadas também (quem gostar de bons trocadilhos sairá, particularmente, satisfeito). Nasceu um clássico de culto.

★★★★
Texto de Miguel Anjos

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