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CRÍTICA - "ANATOMIA DE UMA QUEDA"


"Anatomia de uma Queda" tornou-se num dos fenómenos do cinema europeu (e não só), imediatamente, depois da sua primeira sessão no Festival de Cannes, onde conquistou a Palma de Ouro. À data, a sua autora, Justine Triet, era um nome reconhecível, mas, pouco mais. "La Bataille de Solférino", a sua primeira longa-metragem, desencadeou muito burburinho no circuito internacional de festivais, no entanto, os títulos que se seguiram, "Na Cama com Victoria" e "Sibyl", passaram ao lado.

Em Portugal, onde "Solférino" permanece inédito e "Sibyl" teve um lançamento confidencial, "Anatomia de uma Queda", beneficiando do impacto das suas 5 nomeações aos Óscares, será o primeiro contacto de muitos com o cinema de Triet. Trata-se da mais recente entrada nos cânones do "filme de tribunal pós-moderno", o (sub)género que tem vindo a ser potenciado por títulos como "Saint Omer", "O Julgamento", "O Processo Goldman" ou "Les Chambres Rouges".


Sandra (Sandra Hüller), uma romancista alemã, e Samuel (Samuel Theis), vivem numa cidade remota dos Alpes franceses, com Daniel (Milo Machado Graner), o filho de 11 anos. Um dia, Samuel é encontrado morto na neve, caído do chalé. A polícia questiona se terá cometido suicídio ou se foi assassinado. Perante a tese de homicídio, Sandra torna-se a principal suspeita. Pouco a pouco, o julgamento revela-se como uma viagem inquietante ao âmago da relação conflituosa daquele casal.

À semelhança dos títulos mencionados há um parágrafo atrás, “Anatomia de uma Queda” é, tecnicamente, um filme de género, neste caso, um thriller, no entanto, o que o torna tão fascinante é a sua capacidade de escapar ao caderno de encargos de uma fita de tribunal convencional, ao invés, utilizando-os como ferramenta para encenar um melodrama conjugal, invulgarmente, lancinante, aqui e ali, marcado por preocupações que sempre acompanharam a obra de Triet, como é o caso da parasitação da vida alheia potenciada pelas novas formas de comunicação (telemóveis e redes sociais).

Sandra e Samuel só partilham o ecrã um par de vezes, mas, a sua relação ocupa o centro do filme. Acumulando funções de realizadora e coargumentista (juntamente com Arthur Harari, cúmplice de vida e trabalho que tem até uma pequena participação como ator na reta final de “Anatomia de uma Queda”), Triet disseca aquele casamento condenado com um olhar inquisitivo, dir-se-ia mesmo, acutilante, mas, sempre empático, reconhecendo qualquer de coisa de muito humano, em toda a complexidade que o termo acarreta, em todos os envolvidos na dança, ou melhor, no jogo de aparências e máscaras que se vai desencadear durante o tribunal.

Enquanto participantes desse processo, Hüller e Theis são exímios, em especial, ele, que constrói uma personagem de carne e osso, por quem é, praticamente, impossível não desenvolver algum tipo de simpatia em apenas três cenas. No entanto, importa não esquecer dois secundários de luxo, Swann Arlaud, como advogado e amigo próximo de Sandra, que, provavelmente, nem acredita que ela seja inocente, mas, escolhe colocar as suas opiniões de parte, e Milo Machado Graner, o filho do casal que protagoniza alguns dos momentos mais impactantes da fita, com um olhar melancólico carregado de pathos, uma revelação.

Não sabemos onde irá Triet depois deste triunfo, mas, faça o que fizer, já nos deu um dos primeiros grandes filmes de 2024 e um dos mais impressionantes títulos da atual corrida aos Óscares.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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