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CRÍTICA - "IRON CLAW"

Ao lado de cineastas, amigos e colaboradores frequentes como Antonio Campos e Josh Mond, Sean Durkin contribuiu para o surgimento de um novo modelo de cinema independente norte-americano, avesso às tendências unificadoras (e apaziguadoras) que dominavam os alinhamentos anuais de festivais como Sundance, eles criaram a Borderline, uma infraestrutura de produção cinematográfica, idiossincrática por natureza, que ambicionava inquietar, desconcertar.

Durkin conseguiu destacar-se dos colegas com uma primeira longa-metragem que colocou o seu nome nas bocas do mundo, "Martha Marcy May Marlene", um filme inebriante, intoxicante, a meio-caminho entre o drama e o terror. Muito se especulou acerca do nascimento de um novo mestre, no entanto, Durkin seguiu esse triunfo com um hiato que chegou a parecer interminável. Durante 9 anos, não recebemos notícias suas, até que, em 2020, semanas antes dos confinamentos nos fecharem no interior das nossas casas, levou à Sundance a sua segunda longa-metragem, "O Ninho", novamente oscilando entre a vertente mais contundente, dir-se-ia até, lancinante do drama e uma sugestão de terror que, sem nunca se consumar, era suficiente para nos penetrar a epiderme. Se dúvidas houvesse, o assunto estava resolvido, Durkin não é, necessariamente, um contador de histórias (embora também o seja), mas sim, um meticuloso construtor de ambientes inescapaveis.

Iron Claw, o filme seguinte, entretanto, estreado nas nossas salas, depois de percorrer um fulgurante percurso no circuito comercial norte-americano, é, simultaneamente, uma reinvenção e um prosseguimento tremendamente consistente de um ideário dramatúrgico, estético e ético inatacável.

"Reinvenção" porque, pela primeira vez, Durkin faz um filme acessível ao grande público, "prosseguimento", uma vez que, consegue essa proeza sem necessitar de abdicar de nenhum dos elementos que caracterizam o seu cinema. Trata-se de um projeto antigo, que ele afirma ter na cabeça desde a adolescência, nomeadamente, um retrato da família Von Erich, uma emblemática dinastia de wrestlers que sofreram tantos acontecimentos trágicos que se popularizou a ideia de que deviam estar amaldiçoados.

O protagonista é Kevin Von Erich, a quem Zac Efron dá corpo e alma numa performance inolvidável, é comum ver atores a tentarem transformar-se fisicamente quando interpretam personagens reais, mas, Efron é quase irreconhecível, do cabelo à tigela (foleiro que dói) ao corpo excessivamente musculado (cada membro aparenta estar a segundos de explodir), parece outro, no entanto, não é só espetáculo, Efron vai muito além de nos surpreender por intermédio da aparência e mergulha na dor incessante de Kevin, um tipo simpático, afável e extremamente próximo dos irmãos, que se torna no primeiro espetador da violenta dissolução da sua família.

Para não revelar demasiado a quem não conhecer a história real (sendo que, Durkin sentiu a necessidade de a suavizar, de modo a tornar o filme suportável, diz ele que entendeu que todas as narrativas tem um número máximo de tragédias, quando atingido, não conseguem sustentar nem mais uma), importa manter a vagueza, pelo que, nos coibimos de mencionar detalhes acerca das voltas que o argumento dá a partir do segundo ato, quando o negrume assume o controlo do quotidiano das personagens, depois de um começo que surpreende pelo ritmo paciente e relaxado, introduzindo o público a cada um dos irmãos, garantindo que não temos como antipatizar com eles e, consequentemente, sentiremos a dor de Kevin à medida que tudo descamba.

É um filme difícil, por uma miríade de motivos, contudo, Durkin não só o mantém à tona, como o torna num acontecimento central do ano cinematográfico, devido a um trabalho tremendamente sensível e inteligente de escrita e realização. Aliás, apetece dizer que todas as decisões tomadas em "Iron Claw", são as corretas. O retrato do wrestling como uma espécie cruzamento entre uma arte ancestral (naturalmente, desenham-se paralelos com os gladiadores que entretinham multidões na Grécia Antiga) e um modelo de espetáculo, ancorado em normas e práticas próprias, de necessária especificidade. A evocação do laço dos irmãos como qualquer coisa de inestimável que escapa ao confinamento das palavras. Os pilares da tragédia grega (veja-se a odisseia do pai, estoico e cruel, sem sequer suspeitar disso, que delineia um plano para fugir de uma eventual danação que crê estar no horizonte, inevitavelmente, condenando-se a si e aos seus no processo), estabelecidos como linhas estruturais para a narrativa.

É o tipo de projeto dramatúrgico que merece ser chamado de imaculado e, no entanto, é incorreto, impensável não mencionar os esforços notáveis dos seus colaboradores, os atores. O supracitado Efron é, claramente, quem mais se destaca, mas, não ignoremos a subtil vulnerabilidade de Harris Dickinson, a alma torturada de Jeremy Allen White, a inocência de Stanley Simmons, o misto de submissão e indiferença de Maura Tierney e, naturalmente, a tirania de Holt McCallany, um patriarca que podia ter sido decalcado de uma daquelas peças em que os pecados dos pais ecoam sobre o passado, presente e futuro dos filhos.

É um filme físico, não só pela sua atenção, paredes-meias com a obsessão, aos corpos, magoados, estropiados, dilacerados como as almas neles aprisionados, mas, porque exige uma resposta física do espetador, o choro e o pranto que Durkin induz, fica o aviso, não é "ligeirinho"… Levar lenços é muito aconselhável.

Confirma-se a promessa de um cineasta que insiste em manter-se fiel a um universo pessoal e intransmissível. Chamemos-lhe, para facilitar, um autor.

★★★★★
Texto de Miguel Anjos

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