Avançar para o conteúdo principal

CRÍTICA - "O SABOR DA VIDA"


Em 1993, "O Odor da Papaia Verde" colocou o nome do vietnamita Tran Anh Hung nas bocas do mundo ou, pelo menos, dos frequentadores do microcosmo cinéfilo. O filme valeu-lhe a Câmara de Ouro no Festival de Cannes (o prémio que o certame francês dedica à melhor primeira longa-metragem apresentada no interior das suas múltiplas secções) e uma nomeação ao Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira. No entanto, a viragem do século coincidiu com um estranho fenómeno, o público e a crítica, subitamente, votaram o labor de Hung à obscuridade, ao esquecimento.

Exemplo modelar dessa indiferença é o lançamento discreto, quase marginal, que os seus últimos títulos receberam no nosso mercado, "Norwegian Wood", belíssima adaptação do romance homónimo de Murakami, foi chutado diretamente para o defunto mercado do DVD, enquanto "Eu Venho com a Chuva", peculiaríssima reinvenção dos códigos do noir, e "Amor Eterno", uma investigação sensorial sobre a natureza do afeto ao longo de várias décadas, foram olimpicamente ignorados.

Felizmente, em 2023, a situação mudou, Hung voltou à "cena do crime", isto é, o Festival de Cannes, desta vez, com um filme francês, intitulado "O Sabor da Vida" ("Le Passion de Dodin Bouffant" no original), onde ganhou a Palma de Melhor Realizador. Entende-se porquê, é que, "O Sabor da Vida" é mesmo um pequeno milagre, uma experiência cinematográfica da qual saímos revitalizados, como um bálsamo para a natureza caótica do nosso quotidiano.


Dodin (Benoît Magimel) é um reputado gastrónomo que, há 20 anos, trabalha com Eugénie (Juliette Binoche), uma cozinheira que encara o seu métier tão seriamente como ele. Não demoramos a entender que a relação de Dodin e Eugénie tem qualquer coisa de romântico, ainda que ela, desejosa de liberdade, rejeite sempre os pedidos de casamento de Dodin...

Nas mãos de um cineasta comum, "O Sabor da Vida" podia, porventura, ser acerca disso, ou seja, uma espécie de comédia romântica sobre duas pessoas que, paradoxalmente, tudo aproxima e tudo separa, que necessitam de entender que o seu habitat natural é nos braços um do outro, contudo, não foi isso que Hung quis fazer. Ao invés, "O Sabor da Vida" revela-se uma meditação serena, sereníssima, sobre o que pode ser o amor (quem tiver visto "Amor Eterno", reconhecer este novo filme como uma continuação estética, narrativa e, acima de tudo, espiritual do trabalho que começava aí a ser feito), acompanhando, pacientemente, o quotidiano daquelas personagens, o nível de dificuldade do seu labor diário e, mais importante, o empenho, quiçá, obsessivo com que o abordam.

A certo ponto, Eugénie diz aos convidados de Dodin que conversa sempre com eles, mesmo se nunca se junta a eles para comer, afinal, no seu entender, ao cozinhar para eles está já a promover uma espécie de diálogo. É uma boa forma de resumir o que acontece neste filme de transcendente simplicidade (não confundir com simplismo), que argumenta que confecionar um prato pode mesmo ser um ato de amor incondicional. Para lá do sexo, para lá da paixão, há uma transcendência de almas gémeas que se revela por inteiro nas receitas que ela e ele cozinham, um para o outro, mas também para os amigos previamente mencionados. Ajuda (e muito) que Magimel e Binoche sejam exemplares neste bailado cinematográfico, auxiliando-se mutuamente e elevando a performance do outro, eles que foram um casal durante quase uma década. É um filme de infindável empatia, tocante no seu romantismo antiquado, encenado com uma candura rara e uma fotografia de encher o olho, a título de exemplo, veja-se somente como Hung deixa que a escuridão da noite engula as suas personagens, enquanto a luz solar irrompe, sem pedir licença, pelas janelas da cozinha. Um miminho!

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...