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"Killerman: A Lei das Ruas", de Malik Bader


Nunca tínhamos tido uma longa-metragem de Malik Bader no circuito comercial português. No entanto, parece-nos que “Killerman” é uma belíssima introdução ao que aparenta ser o seu universo temático. Nomeadamente, o quotidiano do submundo do crime nova-iorquino, desprovido do glamour que muitos cineastas tendem a associar às suas obras sobre marginais que vivem à custa das atividades ilegais que praticam. Aqui, encontramos Moe Diamond (Liam Hemsworth), um joelheiro, que também faz lavagem de dinheiro para um mafioso local (Zlatko Buric), que ambiciona uma vida ligeiramente mais respeitável no mundo da venda de imóveis. Certo dia, Moe e o seu melhor amigo e companheiro de armas, Skunk (Emory Cohen), veem-se numa situação difícil. Skunk persuade Moe a utilizar dinheiro do seu chefe para investir num negócio com um duo de traficantes. Moe aceita relutantemente. No entanto, tudo não passa de uma cilada e os dois acabam por necessitar de encontrar um esconderijo, que os polícias corruptos (Nickola Shreli e Malik Bader) que os perseguem não conheçam. Contudo, ao escaparem envolvem-se num sanguinolento acidente de automóvel, que deixa Moe amnésico.


Trata-se de uma premissa manifestamente sugestiva, que Malik Bader transforma num thriller energético e empolgante, ancorado numa interpretação de um precioso elemento supostamente secundário como é Emory Cohen, a compor um criminoso volátil e impulsivo que apenas encontra paz na relação que criou com Moe (citando as automaticamente imortais palavras de Kurt Russell em “Era uma vez… em Hollywood”, Moe é “aquele amigo que é um pouco mais que um irmão e um pouco menos que uma esposa”), que acaba por conduzi-lo a situações e decisões extremas, que possivelmente nunca antes contemplara. Tecnicamente, o protagonista é Liam Hemsworth (note-se, absolutamente notável como um anti-herói relutante, que será iniciado à violência por via da tragédia), mas é Cohen quem nos rouba o coração, especialmente, quando o argumento de Bader (sempre um passo à frente do espetador) abandona o território do policial para se aproximar de um certo modelo de conto moral, que nos providencia uma conclusão deveras enigmática e ambígua, capaz de recontextualizar todos os acontecimentos que nos foram mostrados antes.


Encontrando as suas raízes simbólicas no cinema de autores como Nicolas Winding Refn ou Nick Love, Bader não esconde as suas tendências esteticistas, que tornam “Killerman: A Lei das Ruas” num pequeno prodígio de estilização, não lhe retirando um contundente sentido de realismo que quase nunca acompanham as histórias que tendem a ser contadas acerca deste universo. As ruas estão degradadas e os edifícios decadentes, as personagens não têm quaisquer problemas a recorrer à atos de indiscritível brutalidade como forma de comunicação (a severidade dos mesmos pouco ou nada importa para quem os comete) e o estilo de vida dos envolvidos nem é validado, nem embelezado, Tudo aquilo que vemos parece real, como se nos tivessem aberto as portas para um recanto nada acolhedor de Nova Iorque, onde nunca quereríamos passar tempo algum. É esse realismo desencantado, aliado à astuta componente moral que a narrativa vai assumindo que nos convencem de que “Killerman” é uma das melhores surpresas da temporada.

Texto de Miguel Anjos

Título Original: “Killerman”
Realização: Malik Bader
Argumento: Malik Bader
Elenco: Liam Hemsworth, Emory Cohen, Diane Guerrero, Suraj Sharma, Zlatko Buric, Nickola Shreli, Malik Bader

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