Avançar para o conteúdo principal
"The Gentlemen: Senhores do Crime", de Guy Ritchie


Guy Ritchie aparentava-se ter perdido a identidade por entre encomendas. Fossem os simpáticos filmes da franquia "Sherlock Holmes", a pouco apreciada tentativa de reinventar os mitos arturianos de "A Lenda da Espada" ou o calamitoso remake de "Aladdin". O homem que tão bem tornava as convulsões interiores do mundo dos mafiosos de rua londrinos em charmosas comédias de usos e costumes, parecia ter desaparecido para todo o sempre. No entanto, pronunciamos o óbito desse seu cinema demasiado cedo, e o suculento "The Gentlemen: Senhores do Crime" aí vem comprová-lo. Nele, acompanhamos um encontro entre Raymond (Charlie Hunnam), o braço direito de um traficante norte-americano à beira da reforma (Matthew McConaughey) e Fletcher (Hugh Grant), um jornalista seboso, munido de provas extensas das atividades ilegais do bando, que ambiciona extorquir 20 milhões de libras aos fora-da-lei. Assim, a história do filme vai desenrolar-se à medida que os dois conversam, providenciando uma certa distanciação cómica aos acontecimen tos, muito beneficiada pela entrega completa de Grant à figura caótica de Fletcher e à austeridade com que Hunnam habita Raymond, tornando as suas interações num divertido cruzamento entre entusiasmo e constrangimento que nunca falha na hora de providenciar gargalhadas. Aliás, o melhor de "The Gentlemen" é mesmo a forma como os atores se apropriam da excentricidade do argumento para se transfigurarem nestas personagens quase sempre bizarras. McConaughey não se divertia assim há muito e o sempre confiável Colin Farrel abandona a seriedade que lhe tem sido mais comum, para se encarnar um adorável marginal que só quer mesmo fazer o bem. Apetece dizer que num Reino Unido pós-Brexit a ideia de uma sátira centrada numa guerra territorial não é de todo inocente, mas Ritchie sempre preferiu o entretenimento à profundidade e, por isso, façamos-lhe o favor de garantir apenas que, depois de muitos tiros ao lado, "The Gentlemen" é uma hilariante e empolgante comédia de maneirismos, com a capacidade de nos convencer que, às vezes, podemos mesmo voltar aonde fomos felizes.


Texto de Miguel Anjos

Título Original: “The Gentlemen”
Realização: Guy Ritchie
Argumento: Guy Ritchie
Elenco: Matthew McConaughey, Charlie Hunnam, Michelle Dockery, Jeremy Strong, Colin Farrell, Henry Golding, Hugh Grant

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...