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"Antebellum: A Escolhida", de Gerard Bush, Christopher Renz




O cinema espelha as convulsões interiores e exteriores da experiência humana. Não admira, portanto, que os Estados Unidos continuem a ser o cenário de muitos (e fascinantes) narrativas interessadas em confrontar o público com as ramificações do “pecado original” americano: a escravatura. Em “Antebellum: A Escolhida”, a duo composto por Gerard Bush e Christopher Renz encenam um conto de terror metafórico que ilustra um país divido pelos horrores cancerígenos do odio. Importa não cair no erro de descrever o filme, evitando revelar demasiado sobre as suas peripécias (o que acontece mesmo no respetivo trailer). Afinal de contas, esta é mesmo uma história em que o suspense se evidencia como uma peça fundamental. Digamos, então, que tudo começa quando Eden (Janelle Monáe) acorda numa plantação de escravos no coração da América sulista, no decorrer da Guerra Civil. Obviamente, o quotidiano de tão dantesco lugar é preenchido pelas mais abomináveis manifestações de violência física e psicológica, no entanto, parece sempre existir uma sensação de que algo de muito estranho se passa ali…. Combinando influências de muitos nomes que têm marcado o panorama do cinema fantástico nestes últimos anos, da referência fundamental de Jordan Peele às fábulas de M. Night Shyamalan eternamente associadas a twists mais ou menos icónicos, “Antebellum” não possui a astucia de um filme como Foge, especialmente devido a um terceiro ato demasiado apressado, que não faz jus à tensão que fora construída tão elegantemente na primeira metade da fita. Contudo, a performance de Monáe é de uma acutilância impressionante e a banda-sonora tem uma dimensão épica a qual é difícil resistir, tudo isto a acompanhar uma direção de fotografia sumptuosa (o plano inicial é soberbo, exemplificando como é possível comunicar ao público tudo o que ele necessita de saber, sem sequer ser necessário utilizar uma única palavra). “Antebellum” é, acima de tudo, mais uma meritória contribuição para um debate que continua a provar-se relevante um pouco por todo o lado, afinal, num momento em que o fascismo vai ascendendo no mundo inteiro, vale muito a pena continuar a falar sobre os demónios do racismo, mesmo que certas forças tentem silenciar-nos…


Texto de Miguel Anjos

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