Avançar para o conteúdo principal

"O MEU BURRO, O MEU AMANTE E EU", DE CAROLINE VIGNAL

Em 1879, Robert Louis Stevenson, o autor de “A Ilha do Tesouro” e “O Médico e o Monstro”, publicou “Travels with a Donkey in the Cévennes”, o relato de uma viagem de 12 dias que fez pela região montanhosa das Cévennes, em França, acompanhado por uma burra muito teimosa chamada Modestine (os interessados na aventura em causa, encontrá-la-ão no livro “Os Prazeres dos Lugares Inóspitos”, editado em Portugal pela Relógio D’Água). Nessa altura, Stevenson estava perdidamente apaixonado por uma rapariga americana casada (que, anos mais tarde, se tornaria sua mulher, depois de se divorciar), um romance condenado pelas famílias e amigos de ambos, e a odisseia pelas Cévennes foi uma maneira do escritor tentar esquecer a sua angustiante condição.

Inspirada pela obra de Robert Louis Stevenson, a realizadora francesa Caroline Vignal (cuja primeira longa-metragem, “Les Autres Filles” (2000), nunca estreou nas salas de cinema nacionais), acabou por também percorrer esse caminho, durante o qual nasceu a semente do que viria a tornar-se em “O Meu Burro, O Meu Amante e Eu”, uma comédia romântica pouco convencional, que se tornou num surpreendente fenómeno de bilheteiras, aquando do seu lançamento no mercado francês, inquestionavelmente auxiliado pelo apoio entusiástico da imprensa. Não é caso para menos, afinal, ao convocar a memória das frustrações amorosas de Stevenson, Vignal conseguiu compor uma das mais inspiradas comédias românticas dos últimos anos, nem que seja só pela forma ardilosa com que a narrativa evita os clichés melosos e maniqueístas do género.

Antoinette (Laure Calamy), uma professora parisiense, tem um caso com o pai (casado) de uma aluna, Vladimir (Benjamin Lavernhe). Eles planearam passar a primeira semana das férias de Verão juntos, enquanto a família dele se encontra na praia. No entanto, quando a esposa lhe faz uma surpresa com um passeio de uma semana nas Cévennes, ele vê-se forçado a cancelar os planos, deixando Antoinette sozinha e desolada. Num impulso, a professora decide ir atrás do seu apaixonado e faz uma reserva para o seguir pelos trilhos das Cévennes, acompanhada por um burro chamado Patrick. Contudo, ao chegar ao local, descobre que a maior parte das pessoas escolhem fazer “o percurso Stevenson” a pé, porque os burros têm o seu feitio e não costumam obedecer às ordens dos humanos, levando Antoinette a necessitar de ir sozinha com o animal atrás dos restantes caminhantes, enquanto tenta localizar o amante e passar tempo de qualidade com ele, sem que a mulher e filha se apercebam do que se passa entre os dois.

Belissimamente ancorado no trabalho de um elenco notável, de onde é necessário destacar a charmosa Calamy, aqui a habitar esta personagem comedidamente atrapalhada e sempre muito divertida com uma naturalidade que nos convence de imediato, "O Meu Burro, O Meu Amante e Eu" representa um regresso ao modelo clássico da comédia de enganos, que nunca descamba para a farsa pateta, nem desperdiça a surpreendente força da sua componente dramática, aproveitando ao máximo uma premissa que coloca as personagens num rol infinito de encontros e desencontros, mentiras e enganos, de onde saem muitas e boas gargalhadas, devidamente acompanhadas por uma conclusão serenamente comovente, entregando uma mensagem positiva e esperançosa, sem retroativamente transformar o restante filme num panfleto. Tão depressa não encontraremos um filme tão prazerosamente agradável como este.

TEXTO DE MIGUEL ANJOS

Comentários

Mensagens populares deste blogue

CRÍTICA - "THE APPRENTICE - A HISTÓRIA DE TRUMP"

"The Apprentice", em Portugal, acompanhado pelo subtítulo "A História de Trump", tornou-se num dos filmes mais mediáticos do ano antes de ser revelado ao público, em maio, no Festival de Cannes, "poiso" habitual do seu autor, o iraniano-sueco-dinamarquês Ali Abbasi. De facto, os tabloides tiveram muito por onde pegar, houve um apoiante de Donald Trump que, inconscientemente, terá sido um dos financiadores de "The Apprentice" (só podemos especular que terá assumido que o filme se tratava de uma hagiografia, de pendor propagandístico), a campanha de boicote que Trump e a sua comitiva lançaram contra o filme, a dificuldade de encontrar um distribuidor no mercado norte-americano (nenhum estúdio quer ter um possível Presidente como inimigo), etc. A polémica vale o que vale (nada), ainda que, inevitavelmente, contribua para providenciar um ar de choque a "The Apprentice", afinal, como exclamam (corretamente) muitos dos materiais promocionais ...

"Flow - À Deriva" ("Straume"), de Gints Zilbalodis

Não devemos ter medo de exaltar aquilo que nos parece "personificar", por assim dizer, um ideal de perfeição. Consequentemente, proclamo-o, sem medos, sem pudores, "Flow - À Deriva", do letão Gints Zilbalodis é um dos melhores filmes do século XXI. Um acontecimento estarrecedor, daqueles que além de anunciar um novo autor, nos providencia a oportunidade rara, raríssima de experienciar "cinema puro". O conceito é simultaneamente simples e complexo. Essencialmente, entramos num mundo que pode ou não ser o nosso, onde encontramos apenas natureza, há resquícios do que pode, eventualmente, ter sido intervenção humana, mas, permanecem esquecidos, abandonados, nalguns casos, até consumidos pela vegetação. Um dia, um gato, solitário por natureza, é confrontado com um horripilante dilúvio e, para sobreviver, necessita de se unir a uma capivara, um lémure-de-cauda-anelada e um cão. Segue-se uma odisseia épica, sem diálogos, onde somos convidados (os dissidentes, cas...

"Oh, Canada", de Paul Schrader

Contemporâneo de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola, Paul Schrader nunca conquistou o estatuto de "popularidade" de nenhum desses gigantes... e, no entanto (ou, se calhar, por consequência de), é, inquestionavelmente, o mais destemido. Em 1997, "Confrontação", a sua 12ª longa-metragem, tornou-se num pequeno sucesso, até proporcionou um Óscar ao, entretanto, falecido James Coburn. Acontece que, o mediatismo não o deslumbrou, pelo contrário, Schrader tornou-se num cineasta marginal, aberto às mais radicais experiências (a título de exemplo, mencionemos "Vale do Pecado", com Lindsay Lohan e James Deen). Uma das personas mais fascinantes do panorama cultural norte-americano, parecia ter escolhido uma espécie de exílio, até que, "No Coração da Escuridão", de 2017, o reconciliou com o público. Aliás, o filme representou o início de uma espécie de trilogia, completada por "The Card Counter: O Jogador", em 2021, e "O ...