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 "PRESOS NO TEMPO", DE M. NIGHT SHYAMALAN


Quando se menciona o nome de M. Night Shyamalan todos pensam nas habituais reviravoltas que costumam pontuar o terceiro ato dos seus filmes. Isto é, aquelas informações que nos são providenciadas apenas perto da conclusão e, retroativamente, mudam o contexto de tudo o que testemunhámos antes. Os anglo-sáxonicos chamam-lhe "twists" e com títulos como "O Sexto Sentido" ou "O Protegido", Shyamalan evidenciou o seu talento para os utilizar de forma inteligente.

Esse elemento diferenciador tornou-se numa imagem de marca, que tende sempre a toldar a maneira como o seu trabalho é visto e discutido. No entanto, se é verdade que qualquer discussão sobre a sua filmografia que não aborde essa sua capacidade inata de nos trocar as voltas está incompleta, não é menos verdade que o cinema do indo-americano vai muito além dessa componente


Afinal, quando nos sentamos para ver um filme seu, sabemos que além da possibilidade da surpresa, seremos convidados a entrar no campo da fábula mais primitiva, uma dimensão simbólica onde o fator humano e os seus fantasmas coexistem de modo perverso. E, claro está, nenhuma fábula que se preze se encontra completa sem um elemento moral, outra peça essencial do puzzle Shyamalan, não fosse ele um narrador de histórias em que as nossas certezas civilizacionais se confrontam sempre com a vulnerabilidade dos seus fundamentos.

Em "Presos no Tempo", começamos por conhecer uma família de quatro. Guy (Gael García Bernal) e Prisca (Vicky Crieps) levam os seus filhos Trent (Nolan River) e Maddox (Alexa Swinton) a um resort paradisíaco, com a intenção de lhes dar umas férias perfeitas, antes de anunciarem o seu divórcio e os problemas de saúde que ela insiste em subestimar. No entanto, tudo muda quando aceitam a sugestão de um dos empregados do hotel e rumam até uma praia tão idílica como isolada.


Acontece que, naquele lugar se dão fenómenos aparentemente inexplicáveis, exercendo efeitos ocultos nos seus corpos e fazendo-os envelhecer rápida e inesperadamente, no processo, reduzindo toda a sua vida a um único dia.

Tendo como ponto de partida a novela gráfica "Sandcastle", da autoria de Pierre-Oscar Lévy e Frederick Peeters, Shyamalan torna essa premissa num inusitado cruzamento de géneros, por um lado, damos por nós na terra de crença poética do mais contemplativo cinema contemporâneo (pensemos em Terrence Malick...), por outro, a intensidade frenética das emoções vividas pelas personagens tem o seu quê da tensão caótica de um certo terror (Aronofsky, por exemplo, já trilhou esse caminho no infame "Mãe").

Na verdade, toda a concepção visual do seu filme, dos grandes planos muito aproximados até ao ritmo e aos cortes da montagem, parece decorrer de um raciocínio que providencia especial atenção à componente sensorial do cinema, colocando-nos na pele daquelas personagens sufocadas pela passagem veloz, cruel e inexorável do tempo, sem nunca nos permitir que abandonemos completamente a consciência de que somos, afinal, espetadores daquilo que lhes sucede. O resultado final é parte reflexão sobre a nossa consciência da moralidade coletiva, parte meditação em torno da fragilidade da existência humana, grande filme por inteiro.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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