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CRÍTICA - "A VOZ DAS MULHERES"

Antes de se "reformar" prematuramente, Sarah Polley atuou para autores como Terry Gilliam ("A Fantástica Aventura do Barão"), Atom Egoyan ("Exótica""O Futuro Radioso"), David Cronenberg ("eXistenZ") ou Kathryn Bigelow ("Tempestade no Mar"). Era sempre bom reencontrá-la, no entanto, o seu chamamento era outro, a realização. Entre 2006 e 2012, assinou três títulos, "Longe Dela""Notas de Amor" e "Histórias Que Conhecemos", automaticamente, a sensibilidade com que mergulhava na aparente banalidade do quotidiano, consequentemente, revelando a sua inusitada complexidade, garantiu-lhe um atento culto de fãs.

"A Voz das Mulheres", baseado no romance homónimo de Miriam Toews, é a sua primeira longa-metragem em mais de 10 anos. Nele, acompanhamos, principalmente, Ona (Rooney Mara), Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Agata (Judith Ivey), Greta (Sheila McCarthy) e Mejal (Michelle McLeod), oriundas de uma comunidade menonita. Durante a noite, alguns homens pertencentes à mesma, utilizam tranquilizantes de gado para sedar as mulheres (crianças, adolescentes e adultas) e molestam-nas sexualmente, quando acordam ensanguentadas, doridas e marcadas, é-lhes dito que os ataques resultam de fenómenos paranormais (ou foram vitimizadas por demónios ou Deus decidiu puni-las pelos seus pecados) ou da sua "imaginação descontrolada"...

Eventualmente, um dos homens é apanhado e as mulheres descobrem a verdade acerca dos abusos de que foram alvo, consequentemente, uma pergunta impõe-se, devem ficar na comunidade e lutar para mudar o seu funcionamento (conscientes de que o falhanço é uma inevitabilidade), abandonar a colónia (abdicando da sua entrada no "Reino dos Céus") ou aceitar o sucedido e continuar como se nada fosse. Durante dois dias, as mulheres reúnem-se num celeiro (reinventado como uma espécie de ágora rural) para discutir o seu passado, presente e futuro, procurando uma solução "viável" para um tormento inimaginável. Em seu torno, August (Ben Whishaw), o único homem adulto que conheceremos naquela comunidade, auxilia-as no processo, tomando notas daquilo que vai sendo dito, uma vez que, as menonitas nem são ensinadas a ler, nem a escrever.

O romance de Toews, que também cresceu numa comunidade religiosa extremamente ortodoxa, tradicionalista e opressiva, inspirou-se em acontecimentos verídicos, ocorridos na Bolívia. À semelhança de Toews, também Polley começa o seu filme proclamando-o como "um ato de imaginação feminina", estabelecendo a natureza confrontativa de "A Voz das Mulheres". O que sucedeu na colónia boliviana é hediondo, mas, também é representativo de problemas que se estendem bem para lá das suas fronteiras. "A Voz das Mulheres" questiona as certezas civilizacionais dos homens que controlam aquela comunidade, expondo a vulnerabilidade dos seus fundamentos, contudo, essa vertente crítica é apenas uma pequena parte de um retrato tremendamente empático, capaz de arranjar maneiras de humanizar até as personagens mais vis.

Como em qualquer bom "filme de debate", todas as personagens representam pontos de vista diferentes, sistematicamente adicionando novas camadas de complexidade à discussão, resultando num intrincadíssimo jogo de ping pong entre as atrizes, que se desarmam mutuamente, despindo-se de tudo (sim, não há, por exemplo, maquilhagem, mas, não é só nesse sentido que elas abandonam o seu estatuto inerentemente glamoroso de "estrelas de cinema"), naquele cenário despojado, onde são colocadas frente a frente com todos os seus medos e vulnerabilidades, forçadas a tomar uma decisão que alterará todos os aspetos das suas vidas e dos seus descendentes ("a nossa decisão determinará o teu futuro", ouve-se logo no trailer).

Naturalmente, a execução de um conceito, simultaneamente, tão simples e complexo, prender-se-ia sempre ao labor das atrizes (e ator)... e que atrizes! Rooney Mara ancora todo o filme, com um cruzamento de empatia extrema, dir-se-ia, quase sobre-humana, pragmatismo e inteligência extrema, enquanto Jessie Buckley e Claire Foy lhe providenciam contrapontos perfeitos, também elas mulheres extremamente dadas, gentis e sensíveis, que escondem a sua natureza submissa por trás de um véu de agressividade. Pelo meio, há revelações absolutas, como é o caso do trio composto por Judith IveySheila McCarthy e Michelle McLeod, e uma estupenda composição de Ben Whishaw, ator dado a performances de inusitadas nuances emocionais, que surpreende (e muito) ao dar vida a uma figura tão trágica como as mulheres que o rodeiam.

Se fossemos nós a escolher, era "A Voz das Mulheres" quem tinha saído do Dolby Theater com o Óscar de Melhor Filme...

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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