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CRÍTICA - "CALL JANE - TU NÃO ESTÁS SÓ"


Phyllis Nagy é uma dramaturga e encenadora norte-americana que se afirmou no mundo do cinema quando assinou o argumento de "Carol", de Todd Haynes, a partir do romance "The Price of Salt", de Patricia Highsmith. Agora, chega-nos a sua primeira longa-metragem, "Call Jane" (o distribuidor nacional acrescentou-lhe o subtítulo "Tu Não Estás Só"), que integrou a secção competitiva do Festival de Berlim de 2022.

A "Jane" titular nunca existiu. Entre 1969 e 1973, The Jane Collective (ou Abortion Counseling Service of Women's Liberation) era o nome de um grupo feminista, sediado em Chicago, de aconselhamento para mulheres que queriam interromper a gravidez. Ligadas ao Movimento de Libertação das Mulheres, as Janes (nome de código adotado por todas as mulheres que integravam aquele coletivo) mantiveram-se em atividade até, em 1973, o Supremo Tribunal dos EUA, reconhecer que a Constituição do país garante a cada mulher o direito a escolher abortar.


Entretanto, os novos membros do Supremo Tribunal, introduzidos por Donald Trump, levaram essa resolução a regredir, recolocando a questão do direito ao aborto nas sanguinolentas encruzilhadas da política norte-americana. E se, "Call Jane" tem uma componente militantemente política, que nenhum dos seus intervenientes se absteve de assumir e comentar, durante a campanha de promocional, importa mencionar que Phyllis Nagy não pretende abarcar toda a complexidade histórica que se encontra incrustada no debate em torno do aborto, mas sim, providenciar-nos um retrato contundente e, acima de tudo, íntimo sobre as experiências das mulheres que se dedicaram de corpo e alma a este coletivo e às pessoas que ajudaram ao longo dos anos.

Assim, acompanhamos Joy (Elizabeth Banks), dona de casa e mãe de família que encaixa perfeitamente na imagem arquetípica da "fada do lar". Um dia, o seu quotidiano aparentemente é idílico é perturbado quando uma gravidez muito desejada se torna numa ameaça para a sua própria vida. Incapaz de ultrapassar os limites decorrentes do quadro legal em que se exercia a ginecologia, telefona para Jane (como diz o título original), iniciando um processo que a vai transformar numa militante daquele coletivo.


Contrariamente ao que se tornou habitual no "cinema político" proveniente dos EUA, Nagy reconhece que a mensagem que quer comunicar carece do acompanhamento inestimável de um verdadeiro trabalho dramatúrgico. Nesse sentido, "Call Jane" esquiva-se das facilidades maniqueístas do "filme panfletário", precisamente, por se comprometer a dissecar a complexidade do funcionamento interno das Janes, explorando, por exemplo, a moralidade dúbia do médico empregue pelo grupo e a forma como as diferenças sociais entre mulheres brancas e mulheres negras dificultavam o acesso das segundas aquele procedimento médico.

Colecionando de maneira subtil, mas tremendamente incisiva, muitos sinais daquela época, da televisão à música, passando pela reconversão do próprio espaço familiar, sempre com uma surpreendente ligeireza de tom (excluindo "Obvious Child", de Gillian Robespierre", nenhum outro filme centrado no aborto terá tido tamanha abertura ao humor), "Call Jane" encapsula as muitas convulsões dos anos 60, com um didatismo inteligente, coerente e sensível, que comove sem necessitar de recorrer à manipulação emocional. Nesse processo, não vale secundarizar a importância da contribuição dos atores, em particular, de Elizabeth Banks e Sigourney Weaver, como personagens quase antónimas que, paradoxalmente, tudo afasta e tudo aproxima. 

Bastante recomendável.

★ ★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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