Agora, a Leopardo Filmes dá início à chamada silly season com "Petite Fleur", o filme que fez antes de "Argentina, 1985" e que marcou a primeira "aventura" de Mitre fora do seu país natal. Trata-se de um "objeto" inclassificável e, consequentemente, fascinante, a meio-caminho entre "Ensaio de um Crime", de Luis Buñuel, e os cartoons (inconsequentemente) violentos de Tex Avery.
José (Daniel Hendler) é um autor de banda-desenhada e designer argentino, casado com uma francesa, Lucie (Vimala Pons). Têm uma filha bebé e vivem numa cidade industrial no interior de França ("Petite Fleur" nunca específica concretamente que sítio é aquele, mas, como a narração inicial vaticina, "quando um estrangeiro pensa em França, nunca imagina um local assim"). Quando José é inesperadamente despedido, Lucie aceita uma oferta de trabalho num jornal local para sustentar a família, enquanto o marido fica em casa a tomar conta da recém-nascida. Este "estado de coisas" introduz (ou acentua) um certo mal-estar no quotidiano daquela unidade familiar, tanto mais que Lucie não se adapta lá muito bem ao novo emprego.
Um dia, José bate à porta de Jean-Claude (Melvil Poupaud), o vizinho, para lhe pedir uma pá emprestada. Acontece que, Jean-Claude é um solteirão bon vivant, com muito dinheiro na conta bancária e uma paixão desmesurada (dir-se-ia mesmo obsessiva) pelo jazz. Após uma pequena altercação, José mata Jean-Claude com a pá que lhe pediu emprestada. Em pânico, livra-se das provas e tenta voltar à sua vida comezinha como se nada tivesse ocorrido, enquanto o sentimento de culpa e, principalmente, o medo de ser apanhado e encarcerado, o consome vivo.
Contudo, no dia seguinte, José encontra Jean-Claude fresco como uma alface. O que se passa aqui? Ninguém sabe, mas, José, que necessita de uma maneira de libertar as frustrações que lhe dão cabo do juízo, passa a ir a casa do vizinho todas as quintas-feiras para o assassinar (num processo tremendamente rotineiro que é sempre antecedido por um "programa de preliminares", que inclui uma boa conversa, música e a partilha de uma garrafa de vinho).
À semelhança do que tende a acontecer com filmes que adotam premissas rocambolescas, "Petite Fleur", inevitavelmente, dividirá o público entre quem adere imediatamente ao seu conceito tresloucado e quem o recusa liminarmente.
A ousadia de Mitre é tamanha, propondo-se a encenar uma desconstrução cómica de um certo modelo de melodrama suburbano (pensemos em "Beleza Americana", de Sam Mendes, a título de exemplo), como um desenho-animado extremamente sanguinolento, onde a violência constante é puramente humorística, quanto mais não seja, porque sabemos que nunca acarreta consequências sérias. Nesse sentido, é tudo menos aleatório que José seja um autor de banda-desenhada. No limite, podemos argumentar que o fantasma do desespero, pairando sobre os ombros de José a todos os momentos, distorce a sua realidade, atirando-o para o universo rocambolesco e catártico de uma das suas criações, onde, ironicamente ou não, encontrará o conforto que o vida lhe negou.
A mise en scène traduz lindamente esse rol de situações bizarras, com uma energia caótica que tem o seu quê do jazz que Jean-Claude admira, provocando-nos gargalhadas sonoras e constantes, enquanto trabalha um subtexto dramático riquíssimo e muito pouco usual que faz com que a conclusão, sendo desencantada, possua um romantismo cândido que não antecipamos previamente.
Nem tudo funciona (o subenredo envolvendo um duvidoso guru de auto-ajuda é um bocadinho trapalhão) e é pena que o fulgurante Poupaud não tenha mais "tempo de antena", mas, quando acerta, acerta em cheio. Continuamos sem saber se Mitre é mesmo o "Michael Mann de Buenos Aires" (até porque "Petite Fleur" anda muito mais perto de um outro cinema, mais livre na sua abertura à estranheza e ao atípico), mas ficamos com muita, muita vontade de o reencontrar...
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Texto de Miguel Anjos
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