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CRÍTICA - "FALA COMIGO"

Fundado em 1978 por John Earle e Sterling Van Wagenen, o Festival de Sundance continua a providenciar uma rampa de lançamento a jovens cineastas, com poucos meios e muita criatividade. Em 2023, os gémeos Danny e Michael Philippou contaram-se entre as mais impressionantes revelações do certamente, devido à sua primeira longa-metragem, "Fala Comigo" (ou "Talk to Me" no original), um filme de terror, com um orçamento de "apenas" 4 milhões de dólares (minúsculo para o contexto anglosaxónico), oriundo das paisagens quentes da Austrália, que se tem vindo a assumir como um dos títulos mais falados do ano.

Primeiro, foram as críticas extremamente positivas, ecoadas pela imprensa europeia, no Festival de Berlim, onde passou cerca de um mês mais tarde, depois, autores como Steven Spielberg, Peter Jackson, Jordan Peele ou Ari Aster confessaram a sua admiração por "Fala Comigo" e, por fim, o público foi às salas, tornando-o num dos casos de sucesso mais significativos do cinema independentemente contemporâneo. Compreende-se. Ao combinar a brutalidade sanguinolenta, paredes-meias com o humor sádico, de um "Evil Dead", e a acutilância de um filme como "A Vida não é um Sonho", na maneira como se fala dos efeitos destrutivos do luto e da adição, com um assombroso refinamento estético, "Fala Comigo" assume-se, claramente, como um dos pontos altos do nosso verão cinematográfico.

A premissa é, simultaneamente, simples e mirabolante. Mia (uma extraordinária Sophie Wilde), de 17 anos, não sabe como avançar depois do falecimento da mãe, culpando o pai e mudando-se, de armas e bagagens, para casa da melhor amiga, Jade (Alexandra Jensen). Também essa relação se encontra sob ameaça, porque Mia sente uma atração por Daniel (Otis Dhanji), namorado de Jade, que tudo indica ser mútua, mas, isso é "outra história". Uma noite, Hayley (Zoe Terakes) e Joss (Chris Alosio), os adolescentes mais irresponsáveis e até "inconscientes" daquele liceu, organizam uma festa, que tem como evento principal a interação com uma mão embalsamada, que permite contactar os mortos.

Naturalmente, as coisas "dão para o torto", mas, Danny e Michael Philippou encenam a "queda de dominós" que se segue, com uma eloquência que não é habitual da parte de cineastas estreantes, recorrendo a movimentos de câmara elaborados, por vezes, até acrobáticos, em perfeita sintonia com a ambiência de crescente pavor que vai sendo montada, cena a cena, negando o clima, enganadoramente, relaxado dos momentos iniciais, entre as brincadeiras de Mia, Jade e Riley (Joe Bird), irmão mais novo da segunda, dando lugar a uma parábola perturbadora e, ocasionalmente, chocante (a violência explícita alienará os estômagos fracos, mas, psicologicamente, "Fala Comigo" também visita lugares tremendamente desconfortáveis) sobre a natureza incessante e enlouquecedora do desespero, da forma como nos transforma e das ações que levamos a cabo para tentar amenizar a dor que nos corrói interiormente, mesmo quando é em vão.

Uma estreia imponente, a anunciar não um, mas dois cineastas que importa manter debaixo de olho.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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