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CRÍTICA - "PÔR DO SOL: O MISTÉRIO DO COLAR DE SÃO CAJÓ"


Em agosto de 2021, os portugueses experienciaram o seu primeiro estio "pós-pandémico", com menos receios e constrangimentos. O sucesso comprovado das vacinas e o plano orquestrado para as administrar sugeria que, se calhar, podíamos mesmo ter esperança por um futuro que se assemelhasse ao passado. No entanto, continuava a sentir-se um incomensurável peso melancólico no ar. Afinal, a COVID-19 encarcerou-nos, brincou com os nossos sentimentos e, em última instância, levou-nos a temer pela viabilidade do nosso futuro enquanto espécie.

Nesse contexto, dantesco por definição, a RTP fez jus aos seus princípios fundadores e serviu o público, oferecendo-nos um bombom televisivo na forma de "Pôr do Sol", uma sátira às telenovelas que dominam o primetime dos canais generalistas há mais de 40 anos, curiosamente, concebida, escrita, realizada e protagonizada por pessoas com larguíssima experiência no formato. Em 16 episódios, cabiam todos os clichés ridículos que reconhecemos como peças fundamentais da iconografia da novela portuguesa, sempre apresentados com um sentido de humor burlesco, reminiscente dos spoof movies de David ZuckerJim Abrahams e Jerry Zucker ("Aeroplano!""Ultra Secreto""Aonde Para a Polícia", etc.), que, à semelhança do formato que satirizava amorosamente, era transmitido diariamente (ainda que em blocos curtinhos de apenas 30 minutos).

"Pôr do Sol", eventualmente, tornou-se num autêntico fenómeno, que, "na nossa hora mais negra", como dizia Winston Churchill, nos deu motivos para sorrir mais. Manuel PurezaHenrique Cardoso Dias e Rui Melo, as mentes por detrás da "pedra no charco" que a série se veio a revelar, terminaram a odisseia dos Bourbon de Linhaça e, consequentemente, das pessoas que giram em torno da sua órbita.

E porque é sempre difícil dizer adeus, "Pôr do Sol: O Mistério do Colar de São Cajó" vem ajudar-nos a fazê-lo. Não, uma continuação, mas sim, uma prequela, que explica a origem do colar título que, como sabe quem acompanhou a série, se encontra "na família Bourbon de Linhaça há mais de 3500 anos", e responde a (quase) todas as perguntas que os fãs possam ter acerca do passado das suas personagens favoritas. Nomeadamente, como conheceram o Jesus Quisto? Quem é a Elsa? Porque é que Simão Bourbon de Linhaça é assim tão mau?

"O Mistério do Colar de São Cajó" responde a todas essas questões (e mais algumas) com a graça a que nos habituou, trazendo para o formato cinematográfico, o mesmo espírito anárquico que servia de base à série. Uma vez mais, temos sempre a sensação de que não existem vacas sagradas, todos os temas podem ser abordados comicamente e em qualquer situação, porque, no universo quase surreal de "Pôr do Sol", até a tragédia tem o seu quê de cómico. É um equilíbrio de tom difícil de atingir, no entanto, o realizador Manuel Pureza e o argumentista Henrique Cardoso Dias conseguem-no lindamente, por um lado, devido à inteligência do guião, que não perde uma oportunidade para introduzir um elemento inesperado (seja uma tirada ou um gag mais elaborado, como os dois momentos de product placement), por outro, porque conseguiram o impossível, criar personagens que, sendo cartoons (isto é, versões exageradas de clichês televisivos), tem qualquer coisa de humano que nos aproxima delas, em última instância, levando-nos a encará-las com carinho e empatia mesmo quando se encontram perante o mais tremendo absurdo.

Fundamental para o sucesso deste empreendimento é a contribuição dos atores, perfeitamente alinhados com a energia autoconsciente do projeto, permitindo-se rir de si mesmos com uma joie de vivre invejável, caso exemplar disso mesmo é Rui Melo, intérprete de Simão Bourbon de Linhaça, o irascível vilão da série, que vamos descobrir ter, outrora, sido puro de coração. A sua odisseia de simpatiquíssimo agrobeto (campeão de danças ribatejanas!) a sádico vilão tem todas as componentes de uma tragédia clássica, aqui, relida, reinventada como uma delirante comédia que, como tudo em "Pôr do Sol", nos diz muito sobre o "aqui e agora" português.

Um miminho. Se "Pôr do Sol" terminou mesmo, então, saiu pela porta grande.

★ ★ ★ ★
Texto de Miguel Anjos

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