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Crítica: Lucy, de Luc Besson


Luc Besson é frequentemente insultado pelas "elites cinematográficas", pela sua tentativa de internacionalização do cinema francês (isto também porque muitos daqueles que se chamam cinéfilos hoje em dia na verdade não têm uma verdadeira paixão pela sétima arte, ou pelo menos essa é a única explicação que consigo encontrar para o seu contínuo ódio a muito do que se faz no panorama cinematográfico comercial digamos assim, mas isso é uma discussão para outro dia), sendo por várias vezes acusado de produzir unicamente fracas cópias daquilo que se faz no cinema americano. O que não é de todo verdade, até porque embora seja um facto que Besson incorpora com grande frequência fórmulas bem estabelecidas dentro da cinematografia americana (o que ao contrário do que os seus detracores parecem pensar não é necessariamente mau, pelo contrário, até porque todos os cineastas bons e maus, americanos, europeus ou asiáticos acabam sempre por ir buscar inspirações ao tipo de cinema que os marcou e que os próprios apreciam), mas com exceção de alguns filmes menos bons, a verdade é que Besson produziu e/ou escreveu várias obras bastante recomendáveis, a título de exemplo basta lembrar os frenéticos Taken - Busca Implacável, e The Transporter  Correio De Risco. Já como realizador o francês é um verdadeiro "autor" (isto porque ao contrário do que alguns "sábios" de hoje em dia parecem insinuar diariamente o cinema de autor, não se prende ao reino dos cineastas alternativos, havendo hoje em dia interessantíssimos cineastas que facilmente se incluiriam nessa categoria a produzir ótimos trabalhos, que se classificam como comerciais, até porque o bom cinema nada tem a ver com rótulos elitistas), digamos assim, ou seja um cineasta original, inspirado e fresco que consistentemente se envolve em projetos que entretêm, tanto quanto  nos fazem pensar e/ou sonhar (pensemos por exemplo no delirante "O Quinto Elemento" ou o belíssimo "As Múmias Do Faraó" um  digno sucessor de Indiana Jones), e este seu "Lucy" é apenas mais um exemplo daquilo que o francês já mostrou ser capaz. Um portentoso espectáculo visual que se recusa a viver unicamente das suas (impressionantes) componentes técnicas e ousa tornar-se algo mais.
Para isto Besson parte de importantíssima componente que este nunca descurou na sua carreira como cineasta: o argumento. Aqui a partir de uma ideia potencialmente interessante a ser muito bem explorada de modo a dar origem a uma obra que mesmo partindo de um princípio hoje em dia já provado como incorreto (só conseguimos utilizar 10% do nosso cérebro) acaba por se conseguir tornar verdadeira e surpreendentemente inteligente, colocando até interessantes questões acerca da evolução, o conhecimento e a humanidade, nunca no entanto pondo de lado a sua componente narrativa para elaborar teorias (uma característica que tem marcado presença em algumas obras recentes do "reino" alternativo onde se criam variadas teorias, mas não se chega a lado nenhum, tanto na sua narrativa como nos temas que são abordados), narrativa essa que não só é completamente "imparável" no seu ritmo como imprevisível, apresentando surpresas constantes ao espetador. Fora isso conta-se um desenvolvimento positivo dos personagens centrais, oferecendo-lhes dessa forma uma humanidade que permite  que nos relacionemos com as mesmas com maior facilidade, os clássicos "salpicos" de humor sempre pontuais e eficazes nas obras do cineasta, e algumas curiosas metáforas visuais são outros atributos desta obra.
Além disto, a nível interpretativo faço aqui três destaques Scarlett Johansson que traz vida à  sua Lucy, acertando em cada uma das características que o argumento lhe confere, fazendo uma transição extremamente segura de jovem ingénua (no início da obra) para uma mulher sábia e poderosa a um nível super-humano, aliás a forma como a atriz vai progressiva e subtilmente perdendo a sua humanidade (psicologicamente falando) é o sinal de uma composição verdadeiramente prodigiosa, semelhante à que a vimos realizar este ano no peculiar e genial "Under The Skin" do britânico Jonathan Glazer. Porém os seus co-protagonistas estão à altura, falo aqui de um tipicamente sólido Morgan Freeman a interpretar na perfeição o seu papel, evidenciando com facilidade o interesse da sua personagem nos seus estudos e nas suas palestras e o crescimento progressivo do seu interesse pela protagonista, que se apresenta como a sua única hipótese de obter as respostas que toda a vida procurou, enquanto que o assombroso Choi Min-Sik (de "Oldboy") a criar um vilão sádico e cruel, que é tão temível como detestável, com o ator a replicar aqui de certa forma o que já o vimos fazer na obra "I Saw The Devil" com o mesmo grau de qualidade.
E no geral, "Lucy" é simplesmente um dos filmes mais interessantes que se encontram atualmente em cartaz, um filme original, frenético e empolgante que entretém tanto quanto faz pensar e nos agarra desde os seus peculiares primeiros minutos até ao estonteante clímax final.
10/10

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