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Crítica:

"Com Paixão"


James Marsh encenou um assombroso conto moral sobre os fantasmas do IRA, chamava-se “Dança de Sombras” e, apresentava-nos ao singular microcosmos de um autor britânico interessado em revisitar momentos emblemáticos da história recente. No entanto, quando regressou, trouxe consigo um sentimento de desapontamento inevitável, com o antiguinho e esquecível “A Teoria de Tudo”, olhar desinspirado sobre as vivências do recém-falecido Stephen Hawking, que se resumia a um simpático “veículo” para o trabalho de uma dupla de talentosos protagonistas. Seja como for, andávamos aprisionados no universo insidioso das fórmulas. Do cinema reduzido um mero caderno de encargos…


Em contrapartida, o novo “Com_Paixão” surge como um refrescante retorno aquelas fitas que o queremos ver fazer. Um belíssimo melodrama à moda antiga, centrado numa atípica e comovente odisseia. Nada mais, nada menos, que a do velejador Donald Crowhurst (um Colin Firth invulgarmente frágil e empático), um amador que resolveu competir na árdua Golden Globe Race de 1968, na esperança de se tornar no mais veloz individuo a circum-navegar o mundo, sozinho e sem paragens. De modo, a conseguir emprestar alguma fama à sua empresa de “engenhocas náuticas” e, através da elevada soma de dinheiro oferecida ao vencedor da corrida, retirar a família da situação de quase pobreza que enfrentam. Mas, nem ele era um profissional, experiente nas muitas provações que teria de ultrapassar em alto mar, nem o seu barco possuía as condições necessárias para completar esse percurso.


Pensamos no cinema de James Gray, ele que nunca omitiu o seu interesse em acompanhar sonhadores fracassados, cujas ambições excederam as suas existências concretas. E, ainda que “Com_Paixão” não possua a magnitude melancólica dos trabalhos do americano, nele reconhecemos um permanente humanismo que nos toca profundamente, que resultará dos impressionantes desempenhos de Firth e Weisz e, de um argumento meticuloso da autoria Scott Z. Burns. Enfim, uma bonita e inesperada surpresa, que se apresenta como uma das mais recomendáveis experiências do momento.


Realização: James Marsh
Argumento: Scott Z. Burns
Género: Drama
Duração: 112 minutos

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