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Crítica: "Hereditário"


Logo numa das primeiras cenas, vemos um dos protagonistas, distraído numa sala de aula, onde se discute a tragédia grega. Em particular, será pior ser condenado por consequência de escolhas pessoais, ou por acontecimentos que constantemente fogem ao nosso controlo. Ora, Ari Aster não nos providencia nenhuma resposta especifica (embora, no final, talvez, possamos interpretar uma), no entanto, através desse inocente debate, levanta o véu acerca dos mistérios no centro de “Hereditário”. Um olhar carburante sobre a lenta desintegração de um núcleo familiar aparentemente funcional, que se entranha na epiderme do espetador evidenciando um autor em completo domínio do seu métier. Desde Sundance, que vamos notando comparações muitíssimo abonatórias a autênticos clássicos como “A Semente do Diabo”, “O Exorcista” ou “Aquele Inverno em Veneza”, e não é incompreensível que estas surjam, porém, quem prestar atenção ao metódico trabalho de Aster, rapidamente entenderá que estamos muito mais perto de gente como Mike Leigh ou Michael Haneke. Ou seja, “Hereditário” é um requintado e arrepiante filme de terror, que nos desconcerta e inquieta, mas, acima de tudo, é uma tragédia familiar, sobre a impotência que confrontamos no que ao nosso destino (e dos que amamos) diz respeito.



Realização: Ari Aster

Argumento: Ari Aster


Género: Terror

Duração: 127 minutos

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