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"O Primeiro Homem na Lua"


Quando Philip Kaufman filmou “Os Eleitos”, fê-lo como uma homenagem apaixonada ao engenho americano. 1983 era o ano, e Hollywood procurava o épico na jornada que conduziu o homem à lua. O filme fracassou nas bilheteiras, e foi consumido pelo esquecimento, no entanto, pautava-se por aquela competência anónima que não envergonhava ninguém, e até possuía alguma simpatia, mas, nunca nos providenciava nada que não pudéssemos encontrar num qualquer documentário sobre o assunto. Nada ali era visceral, tudo acontecia no pouco convincente campo do artificio.

Passados 35 anos, Damien Chazelle emprega o capital que o sucesso financeiro de “La La Land: Melodia de Amor” lhe deu, para retornar à Apollo 11, contudo, os resultados não poderiam ser mais distintos, não só porque o cineasta parece não querer abrir mão dos elementos musicais, que comandaram a sua restante filmografia (evoquemos os movimentos das naves, que se assemelham mesmo a uma meticulosa dança, alicerçada na magistral partitura de Justin Hurwitz), mas, também porque o filme assume um desinteresse completo na viagem em questão, dedicando o seu foco inteiramente à conturbada psique do seu protagonista, Neil Armstrong.


Tudo começa num prólogo exuberante, filmado em IMAX, com uma intensidade, que remeterá mesmo para o épico que Kaufman procurou e não encontrou. São uns primeiros instantes curiosos, que poderiam pertencer a uma fita de Christopher Nolan ou Paul Greengrass, porém, essa atmosfera de grande espetáculo rapidamente é interrompida, por uma sequência quase documental no seu naturalismo (se antes pensamos nos realizadores previamente mencionados, aqui a referencia mais próxima seria Valérie Massedian), é Neil a brincar com a filha gravemente doente, cuja morte prematura o assombrará até ao último fotograma.

Na altura, nem nos apercebemos disso, no entanto, o filme abre-se e revela-se perante nós, nessa pequena cena. Como assim? Pois bem, nunca saberemos porque é que Neil Armstrong (ou qualquer outro dos seus colegas), quis dedicar a vida, e em última instância, arriscá-la, para chegar à lua, como tal, Chazelle constrói a sua própria resposta, transformando o lendário astronauta num homem quebrado, que necessita de encontrar uma maneira de fugir à dor que nunca deixará de sentir, e conclui que rumar em direção a um outro planeta, poderia, porventura, ajudá-lo a preencher o buraco que perdura na sua alma.


Dito de outro modo, Chazelle quis despir esta odisseia cósmica das suas componentes épicas, para focar o quotidiano fantasmático de uma família, que perdeu a capacidade de comunicar (às vezes, a vida não continua…), e nesse processo de radical minimalismo, são absolutamente fundamentais as intrincadíssimas composições da duo central, composto por Ryan Gosling e Claire Foy, cujos olhares desolados, gestos subtis e diálogos parcos, conseguem evidenciar uma dimensão de horror existencial, que contamina “O Primeiro Homem na Lua”, e o eleva a um novo patamar, com o qual o filme de Kaufman nunca poderia sequer ter sonhado.

Por outras palavras, o que poderia ser uma jubilosa exaltação da coragem irredutível do ser humano, converte-se numa elegia por passado que não volta, que muito dirá a um cineasta, que construiu a sua carreia sob películas melancólicas, permanentemente aprisionadas num limbo entre os avanços do futuro, e o apelo nostálgico do passado.



Realização: Damien Chazelle


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